sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

31 – Do silêncio à outra face da medalha da cidade

O nosso almoço foi bastante tristonho, pensativo e compenetrado. O meu pai quis sair logo após a refeição em direcção da Câmara para a reunião do Concelho Municipal. Eu fui ter com o Mike e fomos à procura dos restantes Espinhos. A Vanessa continuava de mau humor e pareceu ficar pior quando aparecemos, mas veio à mesma connosco. Passámos pela casa do Luís, que estava a acabar de comer e depois fomos à casa da Joana.

A principal característica estranha deste início de tarde foi o silêncio. Silveira estava transformada numa cidade deserta, fantasma. Normalmente via-se sempre alguém circulando, nem que fosse na Main, mas nada, ninguém passeava, passava apressado ou esperava por alguém. O Food and Liquors e o Young’s estavam fechados. As igrejas também. O silêncio estendia-se à natureza, nem vento soprava, nem pássaros ou moscas ouviam-se. Nada. O que faz a aparição de duas forasteiras, sobretudo se uma delas for neta do fundador da cidade. Fundador e dono.

A casa da Joana ficava por cima do consultório do pai. E se os restantes Espinhos moravam relativamente perto na zona poente da cidade, ela ficava perto do Liceu no fim da cidade a sul. O fim da cidade caracteriza-se pelo descuidado na estética urbanística. Há mais casas pobres, lembrando barracas, com hortas e pocilgas, galinheiros e coelheiras. A casa da Joana é a melhor do quarteirão e a família é muito respeitada na zona. Quem vive ali ou são idosos analfabetos ou pobres que não se adaptaram ao Silveira’s way of life. O pai da Joana funciona para aquela comunidade como um porta-voz seu na sociedade silveirense, é o seu médico, líder e protector. A mãe da Joana dá explicações de graça às crianças vizinhas. A Joana e a irmã, mesmo que a contragosto, são um modelo e exemplo para as raparigas e jovens.

Se é verdade que a sociedade juvenil silveirense se divide nas facções “bem” e “aspirante”, se é verdade que nós os Espinhos somos como que outsiders a essa lógica, é também verdade que os jovens da zona sul da cidade são os párias da nossa sociedade. Falo em sociedade juvenil silveirense porque é na nossa idade que estas culturas são mais evidentes, mas nos adultos isso também se vê. Há convenções sociais a respeitar. A nossa sociedade está escalonada não tanto numa coisa tão rígida como casta, mas classes ou grupos sociais. Embora não haja propriamente violência na cidade, os problemas quando surgem têm como vector a população da zona sul: ou originam o conflito ou são alvo de alguma provocação. A Joana e a irmã só pertenciam ao grupo “bem” por inerência familiar, pois por origem bairrista seriam párias.

Mesmo nesta zona o silêncio imperava.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

30 – No silêncio uma breve troca de palavras

O silêncio manteve-se um bom bocado. Ninguém parecia querer falar, mas eu estava muito curioso sobre que documentos elas tinham apresentado. E quebrei o silêncio para dizer isso. O meu pai contou que eram cartas entre o Teotónio e avó da Clarissa, uma escritura de doação de uma casa em Lisboa e documentos de inicio de uma conta bancária no nome dessa avó pelo próprio punho do Sr. Teotónio. Agora o Concelho iria de certeza avaliar se a caligrafia dos documentos apresentados era mesmo do Sr. Teotónio.

- Que implicações é que isto pode ter nas nossas vidas? – perguntou a Isabel.

- Neste momento, todas e nenhumas. – respondeu o meu pai. – O Dr. Capuchinho perguntou várias vezes o que é que elas pretendiam ao aparecerem desta forma, mas elas nada disseram. Simplesmente vieram apresentar-se e dizer que o Sr. Teotónio tem uma herdeira.

- Se ela é herdeira, então tudo isto é dela. A cidade toda é dela. – disse o Sr. Gustavo. – Ela se quiser, pode pôr-nos todos fora daqui.

O meu pai não disse nada. Ninguém disse. O silêncio instalou-se outra vez.
Desta situação fui tirando várias ideias, a ser verdade o que elas afirmavam:

1 – A Clarissa é minha prima em terceiro grau.

2 – A Clarissa é dona dos terrenos onde a cidade está instalada e de tudo em volta.

3 – Se ela é dona dos terrenos, também é dona dos edifícios – todos.

4 – Se ela veio se apresentar como herdeira, deve querer ser reconhecida como tal.

5 – É fácil de perceber que veio tomar posse do que é seu.

6 – Porquê que não pôs um processo em tribunal reclamando a filiação e consequente direito à herança? Legalmente já não poderá fazê-lo?

7 – Pelo que o meu pai disse, ela ficou com uma bela herança para além da Silveira. O Sr. Teotónio deixou-lhe uma boa casa em Lisboa e uma conta bancária à altura muito boa, agora então muito melhor se não foi delapidada ao longo dos tempos.

O silêncio instalou-se definitivamente e ao fim de, talvez, um quarto de hora a família do Mike saiu dizendo um até logo sonoro, mas carregado de silêncio.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

29 – O que se passou lá dentro

Assim que o ajuntamento começou a dispersar, o meu pai, visivelmente incomodado, furou por onde pode e encaminhou-se para casa. É claro que fui com ele. O pai da Joana seguia pelo mesmo caminho e ela veio ter connosco, juntamente com o Mike e a Vanessa. Tentei saber o que se passara na Delegacia, mas os dois disseram que era melhor falar em casa. Eles pareceram surpreendidos por nos verem os quatro juntos. A existência dos Espinhos não foi propriamente publicitada. Mais tarde soube que o pai da Joana lhe felicitou por ela ter mudado para companhias não tão sedentas de poder ou prestígio. Um grande elogio.

Não demorou muito para que os dois membros do Concelho Municipal seguissem caminhos diferentes e nós também. O Mike veio comigo e a Vanessa foi com a Joana. Por causa de tudo isto o meu pai só iria ver a inscrição na parede na segunda-feira.

Em casa as mulheres da família esperavam-nos ansiosas. O Mike entrou como se fosse da casa e abancou-se na sala. A reunião familiar ia começar. O meu pai olhou fixamente para o Mike e eu pela primeira vez pensei que ia pedir-lhe para se retirar. Efectivamente pediu-lhe para sair, mas para voltar logo em seguida com a família dele. A reunião seria de duas famílias. As duas deram-se sempre muito bem. A minha mãe aproveitou para ir fazer qualquer coisa à cozinha. A Bia quis saber por onde eu andara. Lá contei que tinha ido à missa. Espanto geral. A minha mãe e as minhas irmãs costumam ir à missa vespertina, mas já há muito que tinham desistido de me arrastar. Antes que me obrigassem a explicar o porquê de tão inusitada acção o Mike chegou com a mãe e o pai dele. Os restantes irmãos não vieram.

O meu pai começou:

- Todos vocês já sabem que apareceram duas forasteiras na cidade afirmando que uma delas é neta do Senhor Teotónio. Foi isso que foi dito ao Xerife Torcato na presença do Beto e da Joana Capuchinho. O Xerife levou as forasteira para a sua delegacia e lá reuniu-se o Concelho Municipal. Para meu espanto, o Dr. Capuchinho tomou as rédeas da conversa com a Dona Bernarda, a tia da suposta neta do Sr. Teotónio. Ela apresentou-se e apresentou a sobrinha. Contou-nos que ela era a tutora legal da sobrinha há um ano e meio, por morte da mãe da jovem, sua cunhada. Só recentemente é que a tia tomou conhecimento do passado da mãe da cunhada e da história com o Sr. Teotónio. Ela apresentou uma certidão de nascimento em que o nome do Sr. Teotónio aparece claramente como pai de uma menina, cujo nome aparece na certidão de nascimento da sobrinha. Ela depois contou que sendo tutora da sobrinha esteve a fazer uma arrumação e inventariação aos papéis da irmã, tendo encontrado diversos documentos e cartas que ligam a sobrinha ao Sr. Teotónio. Ela entregou cópias autenticadas por notário ao Concelho. Segundo a opinião dela, não há a menor dúvida sobre o parentesco entre os dois. O Concelho vai reunir-se de emergência de tarde para analisar e deliberar sobre este caso. Como a casa do Sr. Teotónio está em obras, o Dr. Capuchinho ofereceu a sua casa para hospedá-las. E foi isto que aconteceu na Delegacia.

- O amigo Ventura acha que esta história é verdadeira? Que a miúda é mesmo neta do velho Teotónio? – perguntou o Sr. Gustavo pai do Mike.

O meu pai, num encolher de ombros, disse que tudo indicava que sim. O silêncio instalou-se pesado na sala.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

28 - Legenda

O Mayor falou. O que disse é que... me... parece... que não esclareceu lá muito. Tomei a liberdade de não cortar o discurso com as minhas observações, mas numerá-lo, e por isso aqui vai a legenda:

1 – Aqui o discurso começa a descambar. Vê-se logo que é um político a falar, um político que ou não tem nada para dizer ou tem e não quer. É precisa uma certa arte para começar um discurso em que dá a ideia que nos vai dizer alguma coisa e depois... depois sobe à estratosfera do delírio.

2 – Aqui começa o bloco retórico por mim intitulado “Todo”. Anteriormente descobrira que o nosso Mayor usava esta técnica. Mais ou menos a meio do discurso começava várias frases com a palavra “todo”, normalmente seguida da palavra “Silveirense”. O bloco “Todo” tem por objectivo agregar o público num objectivo comum que é o orgulho por ser Silveirense. Desta vez surgiu uma inovação: depois de dois “todo” no singular, dirigindo-se para uma população genérica quase abstracta, lança uma frase sem o “todo” mas fazendo ver que Silveira éramos nós os ouvintes e em seguida retoma com toda a pujança o “todo” agora no plural englobando-nos no discurso, incluindo o orador. E assim arrebatou a audiência.

3 – Aqui começa o derradeiro e mais desesperado apelo ao orgulho Silveirense. O Mayor já não fala sozinho, nem de si próprio em especial, ele fala por nós. Não só as pessoas estavam conquistadas, como também os próprios edifícios, pedras da calçada (se existissem, aqui é tudo no mais puro cimento estilo americano). O Mayor, o nosso Sumo Sacredote, na sua voz pungente exprimia todo o sentimento de gratidão e amor que brotava do mais profundo recanto da alma de cada um ali presente.

4 – Neste momento tradicional dos vivas, a audiência não se conteve e explodiu em vivas, acenos com os braços, largos sorrisos, vozes embargadas pela emoção, muitas lágrimas mal disfarçadas. Se as pedras da calçada, mais uma vez, se elas tivessem bocas e braços, também dariam vivas. Quase que estou a dar vivas agora mesmo. Passemos à última nota.

5 – Com o povo em delírio, quiçá em transe, e incontrolavelmente controlado, o Mayor despede-se sem dizer uma só palavra sobre as forasteiras. O homem é mesmo bom nisto. Falou e não disse nada. Falou e conseguiu que aquela pequena multidão fosse para casa feliz e contente na total ignorância. Viva o Mayor! Viva!

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

27 – E o Mayor falou

Eu estava surpreendido. A Joana pareceu-me embaraçada. O Mike estava divertido. E a Vanessa avisou-nos que se notavam movimentações na Delegacia. Por isso não houve tempo para falarmos sobre o que aconteceu nem sobre o que eu tinha descoberto. As pessoas ajuntaram-se junto à porta. Já lá estava uma equipa da rádio e da televisão, eram os mesmos, na rádio passaria o som da televisão.

Quem vinha à frente era o Mayor. Como um bom político vinha a sorrir como se tivesse acabado de ver uma comédia teatral. Mas o mais certo era essa comédia estar preste a começar, ali mesmo à saída da Delegacia. Avançou o suficiente para deixar sair grande parte do Concelho e preparou-se para fazer uma comunicação. Logo atrás do lado direito estava o Dr. Capuchinho circunspecto. O meu pai via-se lá para trás e parecia empenhado em conseguir sair dali sem esperar pelo discurso do Mayor. O pai da Joana teve mais sorte e antes do Mayor falar já se dirigia para casa. Olhou para nós e fez sinal para a filha segui-lo. Assim o fez. Tive pena do meu pai. Houve algumas fotografias. Sim, os jornalistas dos jornais e seus fotógrafos conseguiram chegar a tempo. Silêncio, o Mayor vai falar:

- Amigos Silveirenses. Como é do vosso conhecimento, e se não fosse, não estaríeis aqui, (1) o que me alegra porque demonstra o quão elevada está a nossa democracia, visto terem acorrido em tão grande número e tão solicitamente, mostra igualmente o interesse que vocês têm pelo bom funcionamento das instituições e da nossa sociedade em geral. (2) Todo o Silveirense ama esta terra. Todo o Silveirense só existe em função da sua terra que alimenta com o suor e sangue do seu trabalho. Silveira não é uma terra, são vocês, vocês mulheres e homens, meu irmãos, sangue do meu sangue. Todos nós partilhamos um sonho. Todos nós, já somos esse sonho. Todos nós, queremos concretizar esse sonho nos nossos filhos e netos e filhos deles! (3) Como soldados na mais encarniçada batalha nós damos a nossa vida de bom grado, oferecemo-la à nossa gloriosa pátria, Silveira, este chão sagrado que tenho a honra de servir e beijo reverentemente com lágrimas nos olhos e o coração em êxtase. Sou teu filho Silveira, queres que marche para tua glória contra as baionetas assassinas e opressoras, pois vou! Vou! Vou, sem hesitar, sem olhar para trás, pois tu mereces tudo, tudo. E mais eu fosse, e mais eu tivesse, e mais eu te daria! Silveira! (4) Viva Silveira! Viva Silveira! Grito até ficar rouco, viva Silveira! (5) E de coração exultante levemos para casa esta certeza eterna que Silveira será sempre nossa, como dela seremos sempre nós. Obrigado e um bom domingo. Viva Silveira Amada. Viva!

E o Mayor falou.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

26 - Numa floresta de pensamentos me embrenhei e surpreendi-me

Eu bem que gostaria de ter estado dentro da Delegacia naquele momento. Eu e toda a cidade. Como é que toda aquela gente se acomodou nas sala pequenas da Delegacia e Prisão silveirenses? O tribunal reúne-se no Salão Nobre da Câmara, aí sim haveria espaço.

O tempo foi passando e a hora de almoço estava a bater à porta. Apesar da imensa curiosidade, as donas de casa tiveram que ir tratar do almoço. O número de homens e de jovens aumentou. O Luís ficou impaciente e partiu. A Vanessa continuava de mau humor e parecia trocar mensagens telepáticas com a Joana, pois olhavam-se de vez em quando. O Mike, um pouco aborrecido com a falta de novidades, tecia considerações sobre as poucas raparigas que por ali estavam, acabando por me contar pormenorizadamente as suas tentativas para aquecer a cheerleader. Fiquei com a impressão de duas coisas: que era o único verdadeiramente interessado no que se estava a passar; e que se passava algo que me escapava entre os Espinhos. Nunca me tinha sentido tão desunido em relação a eles como naquele momento. A Joana estava a se tornar num mistério. A bem da verdade a Vanessa também.

A espera começava a trazer ao de cima a minha noite sem dormir. Fui o primeiro a sentar-me no passeio, nem me importei se estava ao sol ou não. Os Espinhos fizeram o mesmo. O Mike não se calava com risadas baixas e comentários jocosos. Aos poucos o meu cérebro foi fechando as portas de entrada, excepto as necessárias para a vigília. Fui embrenhando-me em pensamentos como numa floresta que me levou ao poema escrito na parede da loja do meu pai.

Não precisava de olhar para lá, mas sentia-o. Estranhamente, ou não, sentia o desejo de tocar-lhe, contemplá-lo. Se não havia novidades das forasteiras, o meu interesse voltava-se para o poema. O cansaço impedia-me de fazer perguntas, mas sentia-me como alvo dele, que alguém escrevera-o pensando em mim, para eu ler, para eu pensa-lo.

Afinal o cérebro estava mesmo era a fechar todas as portas. Apoiei a cabeça nos braços e no joelhos. Os meus pensamentos começaram a ficar confusos e o corpo a ficar leve. Ia partir de viagem. Ouvi a minha voz interior a dizer: meu amor, meu amado, estou só, sozinha, ignota, se soubesses como sou devota, se soubesses como gosto de estar ao teu lado... Estaria eu de olhos abertos, ou já fechados? Ecoava no espaço “estar ao teu lado” “sou devota”. Ecoava. “Quem passa não sabe o quanto meu coração bate por ti. Alta vai a noite, corro antes que a festa acabe. Escrevo só para dizer: gostei de te ver ali”. coração. Coração. Devota. Estar ao meu lado.

Devo ter assustado os Espinhos. Abri os olhos e os braços como que para me segurar. Sentia-me a cair, precisava de me segurar. Acertei no Mike, que pareceu-me estar ainda a falar para mim, e na Joana. O Mike reagiu imediatamente empurrando-me e virei-me para o lado da Joana. Ela quase que caiu para trás e eu ia caindo-lhe em cima. Olhei-a nos olhos. E vi. Devota, ao meu lado, estou só, sozinha, ignota, gostei de te ver ali. Fiquei certo que a Joana era a autora dos poemas para mim.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

25 – Entra em cena o venerável Dr. Capuchinho

Não demorou muito para chegar o avô da Joana, dois minutos depois seguido pelo Mayor e restante Concelho Municipal. O Dr. Capuchinho dos pioneiros é um único sobrevivente e pelo aspecto da mesma fibra do venerável Teotónio. Apesar de não exercer nenhum cargo municipal, continua activo ora no The Workers Licor and Food ora no seu escritório, num primeiro andar a meio caminho entre o Hospital e o Groceries. Na minha opinião, se em Silveira existisse um senado ele seria o decano. Mais, estou convencido que grande parte das decisões políticas e administrativas do Mayor passam pela aprovação do Dr. Capuchinho. É uma desconfiança cá minha.

Se o aspecto do Teotónio não desmentia as suas origens rurais, olhando para o Dr. Capuchinho o mesmo acontecia, mas no sentido de estarmos perante um senhor como já não se vê. Alto, de mais ou menos sete pés, sempre aprumado num dos seus fatos de fino corte, barba branca à patriarca, chapéu preto com fita de cetim, bengala, de que não necessita realmente, de marfim ricamente trabalhado na pega, olhar penetrante, poucos sorrisos, mas muito cavalheirismo. A Joana conta que o avô é bastante afectuoso para com ela, não tanto para com a irmã, e que não consegue disfarçar uma certa tristeza por não ter um neto que continuasse com o nome dos Capuchinhos.

Devo confessar que só depois do início dos Espinhos é que me apercebi que o Dr. Capuchinho tinha um filho e netas. Sempre o vira, tal como o venerável Teotónio, sem descendentes directos, totalmente dedicado à cidade. Os dois, na minha imaginação e forma de os ver, representavam quase uma forma de sacerdócio celibatário. Homens de fibra moral, totalmente empenhados no bem-estar dos outros, que sacrificavam todas as suas ambições pela missão que abraçavam. Mesmo agora olhando para ele tenho dificuldades em pensar que a Joana é sua neta. A sua presença é de tal maneira magnética que somos compelidos a ouvi-lo, respeitá-lo, obedecer-lhe e venerá-lo. A minha desconfiança de que os cordelinhos da Silveira estão sempre entre os dedos do Dr. Capuchinho deve vir da constatação deste poder que ele tem.

O Dr. Capuchinho chegou à porta da Prisão vindo do lado da Câmara, a sua casa situa-se por trás. Abrandou o seu passo firme e apressado para cumprimentar os presentes. Fez uma pequena inclinação com a cabeça quando tirou o chapéu e respondeu a uma pergunta sobre se era verdade que surgira uma filha do velho Teotónio, dizendo:

- Vamos ver, vamos ver. Não se aflijam que vou ver o que se passa.

Logo depois entrou cumprimentando o Ajudante do Xerife que estava zelando para que ninguém supérfluo ao que se passava lá dentro entrasse.

E a manhã instalou-se.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

24 – Elucubrações ligeiramente fora da multidão

E assim foi. Em menos de meia hora a multidão em frente à prisão duplicara. Os Espinhos juntaram-se no momento em que o meu pai e o pai da Joana conseguiram entrar na prisão. A bem da verdade chegaram primeiro do que o próprio Mayor e o restante Concelho. O Mike vinha ensonado dizendo que levaram muito tempo a aquecer aquela cheerleader friorenta. A Vanessa vinha de mau humor. E o Luís simplesmente aborrecido porque tinha que ir visitar a namorada, discretamente, mas a curiosidade era maior.

Nós pusemo-nos um pouco à parte, para podermos conversar mais à vontade. Alguns elementos das nossas famílias estavam misturados na multidão e espalhavam a notícia desta neta que ameaçava o nosso modo de vida, Silveira’s way of live.

Entre nós comentávamos o que se conhecia da história do senhor Teotónio. Até àquele momento estávamos convencidos, tal como toda a cidade, de que ele não deixara herdeiros naturais. A sua fortuna e propriedades tinham sido doadas ao Concelho Municipal na forma de uma fundação.

Teotónio vivera o suficiente para ver a cidade pronta. Pareceu-nos altamente improvável que tivesse descendentes, se vivera quase sempre na cidade. Desde que regressara a Portugal até à sua morte passaram quase trinta anos. A Joana lembrou que ele tinha saídas regulares da cidade.

- Como é que sabes disso? – Perguntou a Vanessa.

- Não te esqueças que o meu avô era o advogado pessoal do Teotónio. As histórias que circulam na minha família nem toda a gente as sabe. Mas acho que isto até era do conhecimento geral. Ele tinha que ir ao banco, contactar com fornecedores e empreiteiros. Não é estranho que saísse muitas vezes, tal como o meu avô.

- E então era possível que ele tivesse uma mulher fora da Silveira? – Perguntou o Luís.

- Sim, tal como tu tens. – Respondeu a Joana. – Não me espanta que tivesse. Das fotografias que temos dele, mesmo já com idade avançada, continuava com um certo charme.

- Para mais sabendo-se da fortuna que possuía. – Conclui eu perante o ar de espanto desaprovador dos restantes Espinhos. – Se calhar disse alguma mentira. Não me digam que era impossível ele atrair alguma golpista?

Todos concordaram comigo resignados. Todos sabíamos que o velho Teotónio era um homem cheio de energia, empreendedor, dinâmico e que só parou quando morreu, mesmo assim deu-lhe imensa luta. Seria de estranhar que, após o longo luto pela Fiona, ele voltasse a querer casar? O estranho é não ter trazido para a Silveira essa mulher. Ninguém ficaria chocado se ele casasse de novo. Ou ficaria?

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

23 – O riso da Joana

Enquanto a Joana se ria agarrada a mim até ao ponto de lhe doer a barriga, em frente à prisão começava a juntar-se uma pequena multidão. Não é nada normal aparecerem forasteiros na cidade, dada a nossa situação peculiar é normal que as pessoas sintam, por um lado, curiosidade, mas por outro apreensão quando ao desfecho da visita.

Tentei prosseguir o nosso caminho, embora não soubesse realmente onde queria ir. Na verdade tinha sido arrastado pela Joana. Ela ia repetindo caoticamente algumas das frases e situações que achara cómicas no encontro com as forasteiras. Não consegui avançar mais do que a loja do meu pai, mesmo em frente ao poema. Sim o poema, que com isto tudo tinha ficado esquecido. No entanto o riso da Joana era tão genuíno e forte que acabei contagiado e rimo-nos à brava os dois agarrados ora às nossas barrigas ora um ao outro.

Reparei mais uma vez no poema. Tive um impulso de contar as minhas suspeitas, mas no estado em que estava a Joana certamente iria continuar a chorar a rir. Não estava preparado para ser gozado em algo que me tocara fundo. Se não tivesse lido o poema, não estaria ali cheio de lágrimas e com dores no maxilar. A minha vontade de rir desapareceu. A Joana levou algum tempo a recuperar e a reparar que eu deixara de rir.

- Parece que isto está a ser uma moda. – Disse eu quando ela se pôs a ler o poema. Não me pareceu particularmente surpreendida, nem interessada, nem indignada. Encolheu os ombros e disse:

- Acho que deves avisar o teu pai e eu o meu. Já agora os Espinhos também.

- Por causa do poema? – perguntei espantado.

- Se achares importante... o teu pai não faz parte do Concelho Municipal? O meu como tem um consultório faz. – Ela deve ter percebido que eu não estava a entender – Por causa da priminha que está ali na delegacia? Dah!

- Ah, pois claro. Mas não achas que o Xerife já não telefonou para o Mayor?

- Mas duvido que tenha telefonado para os nossos pais.

- Ok, então eu vou para casa e aviso o Mike e a Vanessa também.

- Eu passo pela casa do Luís. De certeza que em breve estaremos todos juntos em frente à Câmara.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

22 – Jogos florais em frente à Câmara

O velho Teotónio da Silva deixou uma herdeira.

Talvez por ter batido com a cabeça umas horas antes tive uma reacção estranha, mesmo para os meus critérios de indiferente:

- Então somos primos. Eu sou o Beto, prazer. – Estendi a mão para cumprimentá-la.

- Prazer em conhecê-lo Beto. – Ela tem um toque de mão suave, estremeci por dentro. Se calhar corei, mas a outra não deixou a coisa continuar.

- Oh, que felicidade, é comovente o reencontro familiar, senhor Beto Prazer. Vejo que tem reacções rápidas, mal conheceu a herdeira, já está a tentar ganhar pontos. Vamos Clarissa, temos que descansar. A menina bem que podia ter herdado uma coisa bem mais perto do primeiro mundo.

As duas pegaram nas suas coisas e começaram a andar. A Joana estava quase a rir à gargalhada. O Xerife parecia confuso. Mais uma vez tive o impulso de as seguir. Se percebi bem ela chamou-me oportunista, tinha que desmenti-la.

- E como é a sua graça, senhora? – Estava a ir bem. A sobrinha parou e virou-se obviamente divertida. A tia teve que parar.

- Sim? – Disse ela.

- A senhora, como se chama?

- Não me diga que vai cair no absurdo de dizer que é meu parente.

- Se for parente do Teotónio... mas não é por isso, afinal já apresentou a sua sobrinha. E eu também já me apresentei.

- O fedelho é impertinente. – Fez uma pausa para mudar para uma expressão de simpatia. – Eu chamo-me Bernarda Augusta Pascoaes Meneses de Botelho Castro. Pode me fazer a gentileza de indicar a casa do senhor Teotónio da Silva?

- Prazer em conhecê-la. A casa fica por trás da Câmara. Eu levo-as lá. – Acho que exagerei no polimento vocal. A Joana estava quase a chorar de tanto se esforçar por não desatar à gargalhada.

- Não – A forma como a Bernarda falou foi quase implorando ou ordenando, não lhe liguei nenhuma. -...é necessário, de certeza que tem mais do que fazer. E afinal a casa fica aqui perto.

- De modo algum, onde estaria a cortesia silveirense se as deixasse ir carregadas e sozinhas. De modo algum. – Estava a estender o braço para aliviar a prima Clarissa da bagagem quando o Xerife me interrompeu.

- Bem vamos acabar com esta palhaçada. As senhoras queiram me acompanhar à delegacia para esclarecermos as coisas. E não é um pedido.

Pronto, a autoridade falou e ordenou. A forasteira mais velha olhou horrorizada e começava a preparar um discurso de indignação, mas a expressão do Xerife Torcato não lhe deixou margem para replicar. É esta a grande qualidade do Xerife: sabe impor a sua vontade sem violência, só com a voz e expressão. As forasteiras juntaram-se a ele como cordeirinhos e lá foram para a delegacia. Pois a esquadra de polícia é chamada delegacia por estes lados.

Ao passar por mim a Clarissa sorriu-me. Fiquei com a impressão de que não estava ali por vontade própria. Talvez não gostasse de estar sob as ordens da bruxa da tia. Tia no pior sentido do termo. A Joana tinha lágrimas a escorrer e a boca fechada com dificuldade, nos cantos notavam-se pequenos tiques sorridentes. Eu consigo controlar-me melhor.

Seguimo-las até à delegacia, cem metros de caminho. Por ali a população começava a juntar-se. Mal entraram no edifico um ajudante do Xerife colocou-se à porta para ninguém entrar. E disse:
- Vão à vossa vida. Não há nada para ver aqui. Se houver alguma coisa que seja do interesse público todos serão informados. Vão para casa. Vá, desmobilizem.

A nossa autoridade tem uns modos muito antiquados, sem dúvida. Algumas pessoas fizeram perguntas: quem eram as forasteiras? Que queriam? Só eu e Joana tínhamos ouvido a notícia bombástica. Fizeram-nos perguntas, mas a Joana puxou por mim dizendo que nada sabíamos. Ela fez bem, podíamos gerar muita confusão. Andámos um bom bocado pela Main. Perto da loja do meu pai ela desmanchou-se a rir:

- Beto Prazer?! Ah ah ah ah.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

21 – As forasteiras

A Joana e eu demos conta ao mesmo tempo da chegada destas duas forasteiras. Pareciam ser mãe e filha, sendo a mais nova aparentemente da nossa idade. Vinham com malas de viagem, por isso: estavam de passagem, certamente perdidas, ou vinham para ficar. Mesmo que desejem ficar temporariamente há um problema, nós não temos hotéis nem pensões. Nunca se pôs a hipótese de recebermos visitas estranhas à terra, afinal somos clandestinos.

- Isto vai ser interessante. – Disse ao meu lado a Joana. E tinha razão. Como não recebemos visitas, as visitas que surgissem seriam um problema para as autoridades silveirenses. Uma coisa era certa, não ia dormir tão cedo.

Em frente da igreja começou a juntar-se um grupo considerável de pessoas. Há sempre alguém muito prestável e só consegui ver um vulto a desaparecer para dentro da cadeia. O edifício tem por razões óbvias a única esquadra de polícia, se não disse antes, digo agora: também temos um xerife e é igualmente eleito como os seus congéneres do outro lado do oceano.

As forasteiras, que vinham bem pesadas, fingiram que nós éramos umas árvores ou estátuas. Iam passar por nós como fariam em qualquer outra cidade onde não conhecem ninguém. A mais nova parecia ligeiramente incomodada. A outra não.

Passaram por nós e confirmou-se o desprezo a nós votado pelas forasteiras. Elas ignoraram os comentários de várias pessoas e seguiram em direcção da Câmara. Ninguém fez menção de ir atrás delas. Não sei o que me deu, mas resolvi segui-las. Terá sido um instinto adormecido de jornalista que acordou? Terás sido curiosidade? A Joana acompanhou-me.

Elas pararam em frente à Câmara contemplando-a. A forasteira mais nova deu conta que nós as seguíamos. Mirou-nos várias vezes. Eu, com uma ousadia desconhecida, resolvi tomá-las por turistas, à falta de mais correcta informação.

- Bom dia, este edifício é a sede da nossa Câmara Municipal. Como podem ver, tem uma arquitectura neo-clássica típica das pequenas cidades dos Estados Unidos da América. – Quem diria que as aulas de Cultura Cívica dariam frutos?

- Eu sei. Sabe onde está quem manda nisto tudo? – Perguntou a forasteira mais velha. Ela causou-me logo uma péssima impressão. Tratou-nos demasiadamente snob.

- Nisto tudo? – Como ela se armou em parva, armai-me em parvo também.

- Sim. Em tudo o que se vê aqui à volta.

- Bem, quem manda nesta terra é... – fiz uma pausa só para irritá-la – o povo desta terra, tal como em todo o país. O povo é soberano.

- Olhe, miudinho, não se arme em engraçadinho comigo. Onde está o presidente da junta disto aqui? Mora aqui dentro?

- Acha que iria viver aqui? – Ia continuar a falar quando apareceu atrás de mim o Xerife Torcato, uma das pessoas em Silveira com melhor emprego.

- Bom dia, minha senhora, menina, – tirou o chapéu e fez uma pequena vénia a cada uma delas, depois perguntou num sorriso no final – em quê que posso ser útil?

- É o senhor que manda nesta terra?

- Senhora, eu somente garanto a ordem. Presumo que procure o nosso autarca. – Há uma certa cautela instintiva para não expormos as nossas idiossincrasias.

- Se assim quiser chamar, sim, eu quero.

- Como representante da autoridade posso perguntar-lhe o que deseja com ele?

- Pensado bem, o senhor pode nos ajudar. Pode nos indicar onde fica a casa do senhor Teotónio da Silva?

- A casa... onde… ele viveu?

- Claro.

- Está fechada. Só a abrimos em ocasiões especiais. O povo daqui não é lá muito de ir a museus.

- A casa do senhor Teotónio é um museu?

- Claro.

- É ao menos casa museu? Mantém os pertences do senhor Teotónio?

- Sim está quase como ele a deixou.

- Óptimo. Leve-nos lá. Fizemos uma viagem muito longa e precisamos descansar.

- Desculpe, julgo não estar a entender bem. A senhora está a querer ir descansar para a casa museu do senhor Teotónio?

- Claro. Já que o líder desta terriola não aparece, venho lhe comunicar que aqui a minha
sobrinha vem reclamar a propriedade de tudo o que se vê em redor.

O Xerife Torcato demonstrou uma total incompreensão, ficou vermelho e a suar. A forasteira mais nova ora mirava-nos, ora mirava as outras pessoas que ela ignorara há pouco, ora mirava os seus sapatos. A mais velha com uma expressão de triunfo disse:

- Aqui a minha sobrinha, Clarissa é neta do venerável Teotónio da Silva.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

20 – Do vazio à presença

Fui dos primeiros a entrar na igreja. Fiquei perto da entrada. Obviamente que podia me ajoelhar. Fiquei absorto nos meus pensamentos desordenados. Procurei não pensar, nem sentir nada. Fixei-me no sacrário, é ali que está Jesus em corpo e espírito. Achei curioso ter tido esta ideia de vir à igreja, esta necessidade. Não estava a sofrer nenhum desgosto. Não tinha nenhuma doença para pedir cura. Também não tinha uma grande alegria para agradecer. Se eu sei que Jesus está ali, porquê que isso não muda a minha vida? Fiquei absorto, esvaziado de pensamentos e emoções. Aos poucos aquela sensação que me levara à igreja foi desaparecendo, fui sentindo-me mais quente e desperto para o que me rodeava. Dei por mim com a Joana ao meu lado, observando-me.

- Bom dia, - murmurou ela, sorrindo – que boa surpresa. O que te aconteceu? - Ela tinha reparado no meu galo.

- Bom dia, - murmurei eu – cai da cama e bati na mesa de cabeceira. – Ela pareceu muito espantada. – Tu costumas vir tão cedo à missa? Deves ter dormido pouco.

- Costumo. Já estou habituada a dormir pouco de sábado para domingo. Vais ficar para a missa?

- Vou. Ainda não dormi, mas estou muito bem aqui e sem sono. Apesar de não costumar vir, espero que não haja problema.

- Claro que não, a casa de Deus está aberta a todos os que queiram entrar. Olha já falta pouco tempo. Tenho que ir lá para a frente, eu sou uma das leitoras. Se quiseres podes ir para lá...

- Olha, prefiro ficar aqui, não te importas?

- Claro que não. Fico muito feliz por teres vindo. Até logo. - Imagino que mais nenhum Espinho venha à missa.

A igreja foi se enchendo. Até já tinha bastante gente quando regressei à consciência do que me rodeava e vi a Joana. Vi poucos jovens e a celebração teve menos cânticos do que aquilo que me lembrava. O coro devia vir mais tarde para a missa das onze. Não senti o tempo passar, mas perto do final o cansaço estava a tomar conta de mim.

Não esperei muito pela Joana no fim. Vinha sorridente, mas ficou apreensiva, achou-me pálido. O meu ar apelou ao seu lado materno, com certeza. Ao sair da igreja senti o fresco do dia e gostei.

- Foi muito bom ter vindo, sabes?

- Rezar faz bem.

- Eu mal me lembro do Pai-nosso. Não rezei.

- Beto, rezar não é recitar orações de cor. Rezar é entrar na intimidade de Deus, deixar que Ele Se faça presente em ti, conversar com Ele aberta e francamente. É, realmente, entrar na intimidade Dele e deixá-Lo entrar na tua como se não houvesse mais nada para além de vocês os dois. Mesmo que não saibas foi isso que eu presenciei há pouco.

Não soube o que lhe dizer. Já tinha assunto para pensar de futuro. À aquela hora, nove e meia, circulava pouca gente pela Main. Olhei para a loja do meu pai, ia comentar com a Joana sobre o novo poema, quando vi entrar na avenida pela New England duas mulheres que não conhecia. Em Silveira toda a gente se conhece, nem que seja de vista, por exemplo nunca falei com a irmã da Joana e mesmo com ela poucas vezes apesar de sermos da mesma turma desde sempre. É muito raro ver forasteiros em Silveira e àquela hora da manhã, num domingo tinham surgido duas.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

19 - Talvez

Por causa da lesão no joelho e do galo na cabeça pouco dormi naquele resto de noite. Lá em casa ninguém acordou devido ao meu salto para o chão. E já se sabe, todos os homens precisam de uma mãezinha para tratar dos seus doidóis. As minhas dores foram tantas que às sete da manhã saí do quarto e fui tratar dos meus ferimentos com gelo e analgésicos. As mães deviam trazer uma funcionalidade de telepatia, assim adivinhavam quando a gente precisa urgentemente delas. Pode-se perguntar porquê que não a chamei? E respondo com todo o gosto: porque um homem não admite a sua necessidade eterna dos cuidados da mãe.

Foi assim que, investido do espírito de guerreiro do cinema que depois de milhentos ferimentos se arrasta até ao próximo combate e vence-o, foi à missa naquele domingo. Ai que dores lancinantes. O Mike nesse dia, mais tarde, disse:

- Beto, a pancada na cabeça foi mesmo forte.

Realmente desde que fizera a Profissão de Fé que não pusera mais os pés na igreja. Nada de extraordinário para um rapaz da minha idade. Só uma minoria é que persevera. Mas naquele dia senti necessidade de ir à igreja. Talvez tenha sido por causa da pancada na cabeça. Talvez tenha sido por me sentir desprotegido. Talvez tenha sentido a fragilidade da vida na pele. Talvez tenha sido por me recordar de uma frase de um padre que disse: “Deus ama-te mesmo sem saberes”. Talvez tenha recordado essa frase por estar convencido que os poemas são dirigidos a mim. Talvez por esse mesmo padre ter dito: “Deus fala contigo de diversas maneiras, na maioria delas sub-repticiamente”. Talvez devido à subconsciente esperança de descobrir na igreja a autora dos poemas. Talvez por não conseguir dormir e nem ter sono e porque o padre da primeira missa ter a fama de ser um excelente soporífico. Talvez por ter visto passar a minha vida toda à frente enquanto punha gelo na cabeça. Talvez por me sentir sozinho. Talvez por me sentir desamparado. Talvez esteja a me repetir.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

18 – Meditações sobre o alvo

Estes versos estavam discretamente escritos na parede da loja do meu pai. Quase que consigo imaginar a pessoa junto à parede escrevendo com uma caneta de feltro. Desta vez não era graffiti, era mesmo uma mensagem discreta. Imagino que tenha sido escrita à altura da vista, pelo menos o primeiro verso. Se assim for, então a pessoa é mais baixa do que eu, talvez tenha uns cinco pés e meio.

Estive um bom bocado a olhar para o poema. Ninguém andava no Point. Cada vez mais me convencia a teoria de ser uma mulher a escrever tanto este com o outro poema. A caligrafia tentava disfarçar a verdadeira caligrafia, usava só maiúsculas. Os ós e os ás deixavam adivinhar uma letra feminina. O primeiro a de “para” e o a de a ”ali” saíram arredondados. Todos os ós e todos os pês eram tipicamente femininos. Apesar de ter escrito com previsível pressa, notei um certo amor no acto de deixar a mensagem. Senti carinho por essa desconhecida que devo conhecer, nem que seja de vista.

É difícil de entender este acto, neste local e neste momento. Se o outro poema estava bem à vista, querendo dizer ao mundo e ao seu amado o quanto amava, escondendo-se é certo no anonimato de uma parede, da segunda vez é diferente. O mais certo é que só meia dúzia de pessoas, claro que mais, irão ver a mensagem. Sobretudo naquela noite. Como é que ela podia saber que o seu amado ia passar a altas horas da noite naquele sítio e, ainda por cima, reparar naqueles seis versos? Ok, devia saber que ele ia passar por ali.

“corro antes que a festa acabe”

Parece óbvio que ela escreveu já relativamente tarde, talvez perto a meia-noite. Parece-me que a essa hora devia haver pouca gente a passar por ali. O final da festa tinha fogo preso como garante de não haver ninguém nessa altura a circular. Quem andou nas ruas da cidade, andou mais cedo ou logo depois do fogo. Uma coisa é certa, o número de destinatários diminuiu drasticamente. O final da festa teve muito menos gente do que duas horas antes. Lembro-me de ter comentado com o Mike que o pessoal estava a pensar ver o fogo pela televisão no quentinho da casa. O fogo preso foi o normal, mais do costumeiro. Pouco depois não se via ninguém no Hide Park, excepto quem pertencia à organização. Era suposto o Mike ter esperado por mim, mas ele teve uma emergência. Disse-me que tinha que aquecer uma cheerleader, a tal lourinha que pretendia conquistar, antes que ela entrasse em hipotermia. Ainda há pessoas altruístas. Os outros já tinham partido.

Então ela deve ter escrito aquilo por altura do fogo. Uma percentagem considerável dos resistentes nem passaria forçosamente por ali, muito menos a pé. Como é que ela teria a certeza, e parece ter, de que o alvo da mensagem seria atingido? Fiz um esforço para recordar a maioria das pessoas que estavam a ver o fogo ou a trabalhar. Poucas pareceram-me cumprir as condições para serem o alvo.

De repente dei um salto na cama que me levou ao chão. Estivera a pensar intensamente até às três e meia da manhã e veio-me entre o sono e a vigília a ideia de que o alvo podia muito bem ser eu. Bati com a cabeça na mesa-de-cabeceira, até vi estrelas, e dei uma joelhada no chão fazendo-me ver galáxias inteiras.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

17 - Festa

Como dos versos não houve desenvolvimento, a minha atenção manteve-se ocupada com as aulas e a rádio. O meu trabalho de assistente de realização consistia em ir buscar discos, textos ou jornais, cafés e atender telefones. Queria mesmo era estar em frente do microfone e a escolher músicas. Mas tenho paciência e vou aprendendo.

Outra tarefa que tenho executado é a pesquisa e compilação de pequena notícias nos jornais nacionais, para serem dadas nos noticiários da rádio. Faço recortes e recolho em pastas por assuntos. O que mais gosto de fazer é compilar notícias ligadas à indústria musical e ao showbiz.
O primeiro trabalho mais ligado à rádio, rádio, foi num sábado duas semanas depois de entrar para a estação. Requisitaram-me para auxiliar uma emissão especial a partir do Hide Park. Houve música ao vivo no Bowl, quermesse pelo parque, a Banda Filarmónica Silveirense tocando no coreto e as cheerleaders dando espectáculo. A festa tinha como motivo o São Martinho e por isso houve também magusto à noite.

Eu ajudei a montar o equipamento, corri de um lado para o outro à procura dos entrevistados, fui buscar cafés, sumos e bolos, puxei cabos, levantei antenas e carreguei papéis. Dois quartos de Silveira estavam presentes na festa. Ou seja, fartei-me de trabalhar de graça para garantir uma emissão que nunca seria ouvida por mim, pois estaria na festa se não estivesse a trabalhar. E qual terá sido o nosso share de audiência? Vai um número? Talvez por alto se possa dizer… um por cento. Uau!

A única coisa boa foi a presença dos Espinhos Narcisos, deram-me uma boa ajuda, companhia e alento. Improvisei com eles entrevistas para um microfone usando num jornal enrolado. Trouxeram-me castanhas assadas e água-pé. Mostrei-lhes os equipamentos para a emissão. E avisava-os quando alguma repórter especial se dirigia para perto deles. Estas repórteres eram estudantes do liceu que pertenciam às cheerleaders, mas que não puderam entrar no espectáculo. Oh, que pena não poder vê-las de perna ao léu, com este fresquinho, as cuequinhas da cor do fato justo, quando saltam, dançam ou simplesmente quando nós nos abaixamos um pouco, e que pena não poder ver-lhes dos decotes e os cabelos genuinamente louros da Fiona’s Hairstyles (patrocinadora principal da equipa de cheerleaders, madames do jet7 silveirenses e do único metrossexual a part-time da terra). Oh, que pena! Mas pude desfrutar da sua indiferença para com a minha pessoa. Ai, as perguntas parvas! Ai, os risinhos histéricos! Ai, a jactância! Duvido que alguma saiba o significado de jactância.

Como já não bastava a tarde toda de trabalho escravo, ainda tive que aguentar a noite. Aquela noite foi a minha estreia no trabalho escravo na televisão. A audiência deve ter subido para dois porcento. Estrondoso. Nesse dia havia futebol na televisão nacional. Tenho que dar valor às cheerleaders pois de noite arrefeceu, caiu umas pingas e elas corajosamente continuavam alegres e frescas. Realmente frescas.

A festa acabou e eu tive que continuar lá, mas não senti frio, até suei bastante. Fui para casa depois da uma da manhã. Atravessei o Point devagar entre a Young e a loja do meu pai. Apesar o trânsito inexistente, atravessei nos sinais e ao passar junto à loja do meu pai vejo escrito a vermelho:

quem passa não sabe
o quanto meu coração bate por ti
alta vai a noite
corro antes que a festa acabe
escrevo só para dizer
gostei de te ver ali




terça-feira, 9 de novembro de 2010

16 – Reacções na espuma da água

Silveira sendo uma cidade tipicamente Americana, não o é no que diz respeito à cultura, mais uma vez a cultura, das grandes cidades. Por isso, por cá nunca houve graffiti nas nossas paredes. E dá para imaginar o espanto, o assombro da população. Na realidade eu devo ter sido um dos primeiros a ver a quadra.

É claro que foi notícia de primeira página dos dois jornais da cidade: Silveira Post e Silveira Times. Tenho uma leve desconfiança, mesmo leve, de que pelo menos o Times internacional não sabe da existência desta sucursal. Bem se vê o caudal informativo que jorra da actualidade silveirense.

Mal o sol nasceu, formou-se um grande ajuntamento de pessoas em frente aos graffiti. Várias opiniões surgiram, na generalidade desfavoráveis. O curioso é que ninguém se importou com o facto de ser, em princípio, uma mulher a escrevê-lo. Pelos vistos existe uma mulher apaixonada mantendo em segredo os seus sentimentos que no entanto sentiu uma necessidade imperiosa de os expor ao mundo. Os Espinhos não se mostraram muito interessados nas minhas conjecturas. O Luís disse:

- Nada te garante que tenha sido uma mulher, pode ter sido uma rapariga, ou simplesmente um gajo que te quis dar cabo da cabeça, ou alguém que quis dar cabo da cabeça a muita gente.

- Ou para agitar as águas paradas desta terra. – disse a Venessa.

Os outros limitaram-se a sorrir e voltaram para os seus livros. Nós estávamos na biblioteca.

Por volta do meio-dia o poema já não estava lá, mas na minha cabeça martelava “estou só sozinha ignota”. O rame-rame da cidade fez esquecer em toda a gente aquele episódio rapidamente.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

15 – RCS e RTS (e como começo um assunto e desenvolvo outro)

meu amor meu amado
estou só sozinha ignota
se soubesses como sou devota
se soubesses como gosto de estar ao teu lado


Estes versos não me saíram mais da cabeça. Tinha acabado o meu primeiro dia de cumprimento do sonho de trabalhar numa rádio, quando a caminho de casa deparei com esta quadra escrita a vermelho numa parede lateral da Câmara.

Debato-me sobre o que primeiro devo falar, se da quadra, se do meu primeiro dia na rádio. Hesito. Bem, como os versos apareceram de início, dou a primazia ao meu sonho.

Desde pequeno que gosto muito de música, sobretudo de ouvi-la, pois tocá-la é impossível. Uma das lacunas de Silveira é não ter nenhuma loja de música. Música, filmes e livros, nada de cultura. Por isso só temos duas formas fáceis de ouvir música: quando alguém toca no coreto ou pela rádio. Como a cultura não é das coisas mais incentivadas na cidade, a rádio demorou a chegar, ou melhor, uma estação de rádio sediada em Silveira.

Uma das razões para que aquela teoria do mundo paralelo não seja verdadeira está nas ondas hertzianas. Afinal em qualquer sítio da cidade consegue-se ouvir todas as estações de rádio que se ouvem em Sabugal. Pode-se dizer que as ondas passam pelo portal, mas parece-me um pouco forçado.

A RCS, Rádio Clube Silveirense, deve ter uns dez anos e emite exclusivamente para a cidade e arredores. Portanto é mais uma coisa ilegal neste sítio. Foi difícil a autorização por parte do Concelho Municipal, essa corja de incultos e retrógrados. Dos cinco pioneiros só um, Manuel Castro, conseguiu ter forças para seguir em frente e criar praticamente sozinho a rádio silveirense. É claro que logo que conseguiu o espaço, as máquinas, a antena e respectivo gerador, e conseguiu pôr no ar música, o Concelho quase que municipalizou a estação. Assenhorou-se de tudo, houve muita discussão, e depois da ameaça por parte do Manuel de partir tudo e deitar abaixo a antena, chegaram a um acordo: o Manuel seria o dono, director e principal gerente, mas a emissora era obrigada a ter espaços para a municipalidade.

Como é que é a rádio em termos de programação? Podia ser melhor. O município estipulou uma percentagem grande de música por eles escolhida. Nas horas nobres os programas são responsabilidade do Concelho, ou seja, das sete da manhã até às dez e das seis da tarde às nove da noite. O resto do tempo é livre. Das sete da tarde às nove a emissão sobrepõe-se à da televisão RTS, Rádio Televisão de Silveira. Começa com uma hora de notícias locais e exteriores. Das oito às nove há um programa ao vivo com passatempos e música. A RTS só existe neste horário durante a semana, ao fim-de-semana emite até à meia-noite.

Mas não é a televisão que me interessa. Há alguns meses surgiu a oportunidade de conseguir entrar para os quadros da rádio. O sucesso da rádio é considerável e eles começaram a precisar de mais colaboradores. Inscrevi-me, após uma espera longa, vários testes e outra espera, mais um período de reflexão parental lá consegui o lugar de assistente de realização.

No primeiro dia, ou melhor, noite, pois trabalharia das nove às onze, estive a ambientar-me ao universo. A estação situa-se na zona do Young destinada à discoteca, que ultimamente se tem deslocado para o pavilhão desportivo do Liceu. Assim os programas ao vivo poderão ter público e há espaço para duas cabinas independentes. Enquanto uma está em emissão a outra pode estar a gravar um programa da madrugada ou um anúncio. Por mim teria ficado até de manhã na rádio, mas às onze mandaram-me embora.

Para casa eu podia seguir pela New England ou pela Main e depois cortar pela Câmara, visto que moramos como que atrás para sul do edifício, mais propriamente nas traseiras do hospital. Terei que falar da configuração urbanística de Silveira brevemente. Naquela noite decidi ir pela Câmara. E foi assim que vi os versos.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

14 – Amada Ventura

Já que estamos numa onda de apresentações, falto eu. Como já disse o meu pai é o gerente do Grand Groceries Silveira’s Store. Começou como moço de recados e foi subindo a pulso, sempre mostrando competência e eficiência. A minha mãe agora trabalha em casa, tal como a mãe do Mike, para o senhor Peninha. Tenho duas irmãs, a Isabel mais velha dois anos e a Beatriz mais nova quatro.

A nossa vida não tem sido fácil. A Isabel levou quase dois anos para arranjar trabalho. Teria sido fácil se não houvesse uma guerra surda contra a minha família. Não estou a dramatizar. De uma certa forma a história dos meus pais é parecida da história dos da Joana. A minha mãe é sobrinha neta do grande Teotónio. O meu avô Serafim era o irmão mais novo, ainda não tinha dois anos quando o venerável fugiu com o rabo à seringa.

Este meu avô foi à sua maneira também um aventureiro, casou três vezes e enviuvou igualmente três. Teve sete filhos, mas só a minha mãe sobreviveu a uma vida repleta de pobreza e mudanças. O avô Serafim chegou à Silveira em construção viuvo e com o desgosto de ter sobrevivido aos seis filhos que tivera. Mas a fibra dos Silvas bem representada no Teotónio veio ao de cima. Com quase cinquenta e oito anos voltou a casar com uma senhora de quarenta de Sabugal. A minha mãe nasceu desse casamento tardio.O avô Serafim tinha algo de poeta e pôs o nome à filha de Amada Luz. Sem dúvida fruto de um amor luminoso.

Apesar da diferença de idades a minha avó morreu antes do meu avô. Deixou a filha com dez anos. A adolescência da minha mãe foi passada a tomar conta do meu avô. Felizmente atingiu a maioridade na companhia do pai. Conseguiu logo um emprego nos correios e assim, quando ficou sozinha na vida, tinha um futuro assegurado.

Sei que a minha mãe teve vários namorados, pretendentes como antigamente se dizia. E se o seu nome estava ligado ao amor, também o seu destino estava. O romance dos meus pais é igualmente escandaloso para os padrões médios. Tenho muito orgulho dos meus pais e as minhas irmãs também. Apesar da solidão a minha mãe vivia feliz, não tinha inimigos, mas ao conhecer o meu pai a vida transformou-se. Quando conheceu? Não é bem assim. Quando o amor surgiu.

O meu pai, José Ventura Galhardo, mais conhecido por Ventura, viveu a infância e adolescência entre Sabugal e Silveira. O escândalo silveirense aparece porque a minha mãe é mais velha que o meu pai quase dez anos. Quando começaram a namorar o meu pai tinha acabado de fazer dezoito anos. O facto de trabalhar no Grand Groceries tão perto dos correios facilitou o surgimento da paixão dele. Começou a trabalhar com quinze anos e logo reparou naquela rapariga muito bonita que trabalhava nos correios. Na altura apareceu-lhe totalmente inacessível e por isso foi namoriscando. Viu uma oportunidade de aproximação namorando a irmã mais nova da poderosa Natércia Brigadeiro, a actual gerente do Fiona’s Boutique, chamada Custódia. A Natércia, que trabalhava como assistente à direcção da Boutique, era amiga de infância da minha mãe.

Para mal do casal Amada Ventura a Custódia desenvolveu uma paixão arrebatadora pelo namorado que o sufocava. Antes de se declarar à minha mãe o namoro com a Custódia tinha atingido a ruptura. Reconheço que o meu pai pode não ter tido a melhor atitude para com a namorada, mas se eu estivesse no seu lugar não sei o que faria. A Custódia fez a vida do meu pai um inferno quando ele rompeu e piorou muito mais quando se tornou publico o namoro com a minha mãe. A Natércia tomou as dores da irmã, como é natural, e usou todo o seu prestígio para prejudicar a ex-amiga.

Os meus pais foram em frente, desafiaram tudo e todos. A minha mãe acabou por ser obrigada a sair do emprego, não porque tenha havido pressão dos superiores, mas porque não havia ninguém, na altura, que quisesse tomar conta da minha irmã. Nenhuma ama aceitou a minha irmã e o único infantário opôs inúmeros obstáculos.

Espantoso é o facto de o meu pai ter conseguido chegar a gerente do Groceries. Ele, perante o concelho municipal, que gere a cidade, tem o mesmo estatuto da poderosa Natércia. Isto faz-me pensar que sendo o concelho maioritariamente masculino é mais fácil prejudicar uma mulher do que um homem.

Foi difícil, mas a minha irmã Isabel conseguiu entrar para os correios e a não ser que ela tentasse um trabalho tipicamente masculino ficaria sem possibilidades de se empregar. No primeiro dia de emprego dela, eu convenci os Espinhos Narcisos a fazer um brinde de cerveja à porta dos Young virados para o Fiona’s. Somos subversivos!

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

13 - Joana

Da Joana há a dizer que pertence a uma das famílias mais prestigiadas de Silveira. O avô paterno foi advogado do próprio Teotónio. Foi ele que ajudou a criar a Silveira do ponto de vista legal, ou se quisermos ilegal. O filho não quis seguir as pisadas do pai e formou-se médico, podia muito bem ser o director geral do Health And Care Grand Hospital da Silveira. Prefere ter um consultório no fim da Main, mesmo em frente ao Liceu Geral. O pai da Joana chama-se Filipe Miguel Barata Capuchinho e quando voltou formado em medicina trazia consigo a sua esposa Margarida da Cruz Diniz, uma recém formada professora de matemática. Eu não a tive porque a Joana tem sido da minha turma desde a primária.

A família por inerência histórica é prestigiada, mas houve outras que se sobrepuseram em poder e, quiçá, brilho. Os Capuchinhos vivem para o serviço e quem governa vive para ser servido. No entanto as filhas não deixaram de pertencer ao grupo “bem”. A Maria Luísa deve já estar arrependida de não ter ido para a Universidade. Por causa do calhorda do Rui ela pode ter hipotecado um futuro brilhante, era e é tão boa aluna como a Vanessa. O que o amor faz.

A Joana, quando era uma menina “bem”, era no entanto discreta e afável para todos. Como já disse, antes de a conhecer melhor tinha uma imagem dela bastante desfavorável. Se não tivesse existido aquele trabalho, nunca me teria cruzado com ela. A sua discrição passa também pela pouca notoriedade escolar a nível de notas. É popular pela simpatia, mas ninguém se preocupa muito com ela. O ostracismo votado pelo avô ao filho atingiu-a também, mas o mais interessante é que ela gosta disso, sempre se sentiu incomodada pela popularidade da irmã.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

12 - Luís

O Luís é primo direito da Vanessa, é um Peixoto porque o pai é irmão do pai dela. É o terceiro filho de seis do casal Abílio Peixoto e Maria Idalina Cunha. O senhor Abílio e a dona Idalina protagonizaram um fervoroso romance que está bem patente na prole. Ele veio para a zona como soldado da guarda em Alcácer do Sal e como gostava muito de bailaricos e festas correu-as todas da região. A Idalina era filha de um grande proprietário de Palmela. O amor foi imediato e arrebatador. Andaram fugidos pelo país e estrangeiro, cada um dos filhos nasceu numa terra diferente. O Luís nasceu nos Pirinéus. Instalaram-se em Silveira porque o irmão Miguel, que já cá vivia, os chamou. Por sorte a madrinha da Idalina era muito rica e ao morreu deixou-lhe toda a fortuna. E assim a família do Luís, chegando na miséria para ir trabalhar na apanha do arroz e na varredura das ruas, subitamente viu-se investindo em terra fora da Silveira. O pai do Luís é um grande produtor de arroz. A mãe é doméstica e cuida dos filhos.

Por causa desta história familiar o Luís adoptou uma postura neutra. Não quer ou pode se aliar aos aspirantes porque de uma certa forma pertence aos “bem”. Toda gente respeita-o, mais pelo poder da família do que por ele.

Não é lá grande aluno, vai dando para passar, não me parece que queira seguir a Universidade. É o artista do grupo, desenha muito bem e gosta de pintar. Quem o quiser ver é no campo, frente a um arrozal pintando o reflexo do céu no azul e verde do leirão. Para além da arte, tem uma paixão pelo rio Sado, volta e meia lá anda na esperança de encontrar um roaz.

De nós todos o Luís é o mais sossegado em relação aos amores. Ele tem um namoro há quase quatro anos com uma rapariga do Sabugal. Só nós os Espinhos é que sabemos disso. Ele mantém esta imagem de artista alheado para não sofrer pressões. É o maluquinho da família. Quando tiver perto de vinte anos e que os seus quadros e trabalhos gráficos comecem a dar dinheiro, vai para o Sabugal e casa com a namorada. Já fomos todos convidados. Vai ser bonito, vai.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

11 - Vanessa

Quem não anda a dormir é a Vanessa, Vanessa Cristina Silva Peixoto. Vanessa Cristina, devemos ser muito poucos os que sabem desta faceta obscura desta brilhante aluna. Ela será sem dúvida alguém muito importante, mesmo lá fora. Quer ser advogada e tem estofo para ser o que quiser neste mundo. Para além de muito inteligente, é o complemento feminino do Mike no desporto e é bem bonita. Até parece ser a mulher ideal, mas, e há sempre um mas, tem um feitiozinho difícil. Literalmente tem arrasado todos os pretendentes a namorado mesmo antes de eles a pedirem em namoro. É uma verdadeira armadilha, atrai o incauto rapaz e depois ataca-o impiedosamente usando a grande inteligência que todos lhe reconhecem. Não sei até que ponto gosta de jogar, de manipular os outros. A verdade é que para além dos Espinhos não tem amigos.

A mãe dela, que se chama Clotilde Silva, trabalha na Fiona’s Boutique. É uma mera empregada, mas quem olhar para ela pensará que é uma especialista em moda, uma opinion maker, e muito bem relacionada. É casada com um quadro médio da Câmara, chamado Miguel Peixoto. Este ramo dos Silvas é chamado Os Silvas Novos, para além de terem perdido o da, estão ligados ao Teotónio por parte de uma irmã dele que casou com um algarvio chamado Manuel Silva. Ele veio à monda e foi ficando, encheu a casa e o Sabugal de filhos, alguns vieram para aqui.

Uma característica das famílias dos aspirantes é que procuram ser aquilo que não são, mas desejam ardentemente ser. É triste ver o esforço da dona Clotilde em singrar na elite mais restrita de Silveira. Felizmente a Vanessa tem conseguido escapar airosamente aos devaneios da mãe. Ultimamente a principal preocupação da mãe da Vanessa é que ela arranje um namoro na elite e que seja rainha do Baile de Finalistas do liceu. A senhora vive para isso...

terça-feira, 19 de outubro de 2010

10 - Mike

Ninguém sentiu a nossa falta no Young, nem cada grupo os membros perdidos. Assim se vê a importância das pessoas.

Cada um dos Espinhos tem uma importância única. O Mike é um dinamizador por excelência. Está sempre pronto para tomar iniciativas, a pensar em fazer coisas, quaisquer que elas sejam. É o atleta do grupo e bonito também. Pode-se dizer que eu vivi sempre à sua sombra. Das poucas namoradas que tive a ele o devo. Sempre namorei as amigas das namoradas dele. Ele é o leão e eu a hiena, bonita imagem e bastante favorável a mim, sim senhor.

Como já disse a nossa amizade remonta aos tempos de berço. As nossas mães já eram amigas de infância e como somos vizinhos o estranho seria não sermos amigos.

O pai do Mike trabalha na barragem norte como operador chefe de turbinas. Chama-se Gustavo Meirinho da Silva e a mãe Maria da Luz Sousa da Silva. Para além do Mike, que se chama António Miguel Sousa da Silva, há o Carlos, mais velho, o Manuel e a Susana, mais novos. Estes Silvas pertencem a uns Silvas que há cinco gerações vieram para esta zona. São os Silvas Velhos, pois o ramo do Teotónio veio de outra região do país há quatro gerações. No entanto, os dois ramos cruzaram-se quando um bisavô do Mike casou com uma tia do Teotónio e por isso nós somos ainda parentes no sétimo ou oitavo grau.

A dona Maria da Luz também trabalha como costureira para o senhor Peninha. Ela faz o trabalho em casa, optou por isso para poder estar mais perto dos filhos. A Susaninha está a seguir os passos da mãe, está a tornar-se uma boa costureira.

Neste momento o Mike tenta conquistar uma lourinha, meio neutra meio aspirante, um ano mais nova. Refuto desde já a ideia de vir a lucrar com esta relação, de há duas namoradas para cá deixei a hiena em mim adormecer.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

9 – O início de uma nova era

Então como é que nasceram os Espinhos? Nós os cinco estávamos na mesma turma e fomos obrigados a fazer um trabalho de grupo juntos. A professora de História quis misturar os alunos pertencentes às várias sensibilidades da nossa sociedade. Era tradição ninguém se misturar e haver grande competição. Chegou a haver espionagem e sabotagem de trabalhos de grupo. Desta vez o objectivo era evitar isso, mas era arriscar confusão.

Na nossa turma os neutros eram poucos, mas suficientes para no meu grupo ficar o Luís. Nos outros grupos ficaram dois “bem”, um neutro e dois aspirantes. Como faltava um “bem” e sobrava um indiferente, eu, o nosso grupo ficou com dois aspirantes e uma “bem”, a Joana. Coitada da Joana, se na realidade ela não fosse uma miúda muito diferente do estereótipo, não teria sobrevivido no grupo. Logo que nos juntámos, ela disse:

- Bem, vamos pôr mãos à obra?

- E quem é que te nomeou líder do grupo, para vires dar ordens? – Perguntou a Vanessa.

- Ninguém. Só queria evitar discussões sobre qualquer coisa fora do trabalho. Nós temos maneiras diferentes de ver as coisas, usemos isso para valorizar o nosso trabalho de grupo.

- Apoiado. – Disse o Luís e falando para mim começou logo a planear o trabalho.

Nós os dois debatemos e fixámos os vários pontos de interesse do assunto a desenvolver. Aos poucos os outros entraram no debate e o nosso grupo foi o mais harmonioso da sala. Casos houve que por respeito à professora não surgiram agressões físicas, mas no recreio houve porrada.

Encontrámo-nos várias vezes fora da escola, sempre no Young. Entre as amigas da Joana e os amigos do Mike e da Vanessa, havia uma certa estranheza ao ver-nos juntos a trabalhar.

O Young é um espaço com um longo balcão, que acompanhava a esquina para ambos os lados, e mesas para seis pessoas ao longo das montras. Os membros dos “bem” ficavam sempre na ponta mais longe da porta do lado da New England, os aspirantes obviamente na ponta do lado da Main. Nós estávamos ora de um lado ora do outro.

A formação consciente dos Espinhos Narcisos ocorreu quando num certo dia entra um casal no Young e vai para o lado dos “bem”. A rapariga, uma Marta de dezassete anos, vinha de mão dada com um tipo chamado Rui de dezoito anos. Ela era uma das principais dos “bem”, cheerleader, rainha de popularidade e filha de um ex-Mayor. O Rui era “um quadro médio” dos aspirantes, batedor de sucesso de basebol e filho de um dos líderes da oposição ao actual Mayor. A Joana ficou chocada ao vê-los pois este Rui tivera, até umas semanas atrás, um romance conturbado com a irmã mais velha dela, Maria Luísa. Este namoro nunca chegou a ser oficial e às claras porque as pressões eram muitas, sobretudo por parte do lado “bem”. Do lado dos aspirantes igualmente havia a noção de que não deviam haver ligações com os opressores. E o Rui era conhecido pelos seus ideais de esquerda e de irreverência. No fundo era mais um “bem” só que disfarçado. E ambicioso, manteve a Maria Luísa em banho-maria, nunca querendo assumir um compromisso até que teve a oportunidade de fisgar um partido melhor. A Maria Luísa sofreu muito com a situação e com o rompimento ainda mais. Sofreu ao ponto de ter saído de Silveira por largos tempos, oficialmente para estudar, mas, segundo mais tarde a Joana nos confidenciou, na realidade esteve numa clinica a recuperar de uma depressão.

Ao ver o casal a entrar a Joana ficou branca e depois vermelha e subitamente sussurrou-nos que queria sair dali imediatamente. A Vanessa que também estava furiosa pela traição ao grupo pelo Rui, disse:

- Mas temos o trabalho para fazer, hoje mal começámos. Temos que avançar um pouco.

- Aqui não fico mais nem um segundo! – Disse a Joana categoricamente.

- E o nosso trabalho? – Perguntou o Luís.

- Continuamos noutro sítio hoje ou noutro sítio noutra altura. – Respondeu ela levantando-se.

- Não podemos nos atrasar. – Disse a Vanessa – Que tal irmos então para a biblioteca?

- Na biblioteca não podemos falar à vontade. Eu conheço um sítio bom e hoje está um bom dia. – Disse eu e propus o Hide Park.

A ideia foi aceite por todos e num instante pusemo-nos lá. Quando já estávamos instalados, a Joana disse:

- Vocês sabem que eu sempre andei com pessoas que são chamados betos, betinhos...

- Antes de mais quero dizer que beto só há um, sou eu e mais nenhum. Eu sou o Beto. Convém que lhes chamemos de meninos e meninas bem, meninos da mamã, finórios, cor de burro quando foge, mas betos não. Ok?

- Está bem. Como estava a dizer eu pertenço a esse grupo, mas quero deixar de pertencer. Depois de ver o que aquele desavergonhado fez e pior ainda, o que os... finórios fizeram ao aceitá-lo de braços abertos, eu não tenho outra alternativa do que cortar com eles. É por isso que não quero voltar tão cedo ao Young.

- Eu estou de acordo contigo. – Disse a Vanessa. – O Rui traiu os amigos e companheiros.

- E pior, - começou o Mike – eu bem vi os amigos deles todos sorridentes como que aprovando.

- Eu acho bem, - disse o Luís - como neutro nesta contenda quanto maior união melhor.

- Pois acho tudo uma hipocrisia – disse eu – uns atacam os outros, mas somente com o intuito de os substituir. O Rui conseguiu passar para o lado dos finórios e estes acolheram-no de braços abertos. Uns dias antes quase que se matavam, agora por ambição são amigos. A mim cansam-me estas coisas. A política é-me indiferente.

Houve um silêncio. A Vanessa perguntou pela irmã da Joana. Não obteve resposta excepto as suas lágrimas. Nós adivinhávamos alguma coisa de grave, mas ela só mais tarde nos contaria. E quando o choro abrandou eu num arrebate emotivo declarei que nós os cinco devíamos formar o nosso próprio grupo e deixar de ser conduzidos pelos critérios instituídos da nossa sociedade. Assim nasceram os Espinhos Narcisos.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

8 – Pré-história

Nós os Espinhos Narcisos gostamos mais do Hide Park do que do Young. Podemos ficar sossegados debaixo de uma árvore conversando sem intromissões. Em Silveira existem dois grandes grupos juvenis: os ricos que eu intitulo de grupo “bem”, no fundo são uns betinhos, mas como eu sou o Beto prefiro chamá-los de “bem”; os outros são os aspirantes a “bens”. É como se fosse direita versus esquerda. Os “bem” representam o poder e direita, os outros representam a alternativa e a esquerda. Os Espinhos podiam ser uma terceira via, como na política, mas não queremos. Nós somos nós e vemos a vida à nossa maneira. Não queremos poder.

Por isso preferimos o Hide Park, não queremos as confusões propícias ao Young. Naturalmente tempos houve em que eu e os meus amigos andámos sempre por lá. Ocasionalmente ainda lá vamos, mas é mesmo para consumir ou levar para o parque.

O curioso é que o Young esteve na origem dos Espinhos. Eu e o Mike somos vizinhos, porta com porta, tal e qual como irmãos. No entanto, ele simpatizava com o grupo aspirante a “bem”, talvez por tradição familiar. Ele e a Vanessa eram membros activos. Naturalmente que eu ia também, nem que só fosse para estar integrado num grupo no Young. Ora a Vanessa é prima, pelo lado não Silva, do Luís, que era como eu, neutro. Ou melhor, o Luís é neutro e eu sou indiferente, o que faz com que esteja fora da disputa, quem é neutro está dentro. Antes da criação dos Espinhos, portanto na pré-história, a Joana pertencia ao grupo “bem” e era aos nossos olhos uma petulante, mimada e convencida. Ok, aos meus olhos. Os outros eram contra, por ela estar do outro lado ou porque era muito activa.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

7 – Some hot spots

Que mais se pode dizer sobre Silveira? Há várias warehouses (sim, nós aqui chamamos isto às lojas que não são da área dos comes e bebes), principalmente na avenida principal, chamada Main Avenue. O sistema de comércio nesta cidade é interessante. Para todos os efeitos os nossos fornecedores externos têm os nossos contactos em terras aqui nas redondezas, é aí que estão os armazéns. Depois nós, discretamente, trazemos as mercadorias para a cidade. Eu sei disto porque o meu pai gere o Grand Silveira’s Groceries Store, ali vende um pouco de tudo, desde fruta a bugigangas. Sim, a moda dos trezentos também chegou aqui. A loja situa-se no primeiro cruzamento da Main. Primeiro e principal de toda a cidade. A via que cruza com a Main é a New England Street (na minha opinião esta merecia ser também ser uma avenida, é tão larga como a Main) e liga a oeste o campo de desportos, não escolares, com a estrada que liga Silveira com o resto do mundo a leste. Na realidade todas as estradas vão dar à saída de Silveira, o tal portão mágico. É uma verdadeira rede viária.

Naturalmente que o cruzamento tem um nome... e ele é... America’s Point. Um forasteiro dirá: “o quê?” e depois “porquê”. E alguém dirá, silveirense claro, porque sim. Nós chamamos-lhe somente Point. E o Point tem uma importância fundamental para o jovem, e mesmo adulto, silveirense. Numa esquina tem o Grand Groceries, em frente na Main está a Young Silveira’s Food, onde os adolescentes e jovens vão encontrar-se, namorar e comer uma sandes com uma cola. Mesmo antes da Young está o Post Officce onde a minha mãe trabalhou. Dou outro lado da New England, do lado da Grand está o The Workers Licor and Food, um largo restaurante onde, agora, quem for ou pretenda ser alguém em Silveira vem aqui regularmente, é uma espécie de ante-câmara da Câmara. Do outro lado está Fiona’s Boutique a maior warehouse dedicada à roupa, mas homem que é homem vai à casa do senhor Augusto “Peninha” Alves. Os jovens não têm outro remédio se não ir ao exterior comprar a roupa que preferem. Eu já tentei convencer o meu pai a abrir uma secção de roupa jovem, mas ele diz que não tem alvará.

Ao lado do Fiona’s Boutique está o Silveira’s Theatre onde se vê o cinema possível. Na verdade agora está muito melhor, embora não se devesse chamar tecnicamente cinema ao vídeo. Recentemente os responsáveis pela cidade perderam a cabeça e compraram um écran plasma enorme e como os dvds são baratos e acessíveis, os silveirenses cinéfilos andam a ver os êxitos com uns meses de atraso. É bem melhor do que antes, que não víamos nada ou com anos de atraso. Quem quer ver teatro vai ao exterior ou ao liceu.

Quem quer dançar tem dois locais: ao lado do Young, e pertencendo à mesma gerência, está um inicialmente projectado Saloon remodelado no interior, que se converteu em bar discoteca, para festas maiores é aberto o andar superior, mas normalmente lá situa-se uma associação recreativa; o outro lugar para se dançar é o Hide Park, sim Hide, porque está circundado por uma vedação de madeira de um metro e se situa no fim da New England à direita, lá existe um parque muito bonito e bem tratado, há um coreto e um pequeno anfiteatro ao ar livre, é aí que se pode dançar, quando a música for propícia, ou então estar sentado na relva. O coreto tem o nome de coreto e o anfiteatro o nome de Silveira’s Music Bowl. Americanices.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

6 - Fiona

O rio merece uma certa atenção. Sem dúvida que tenho que louvar a coragem e engenho do nosso Teotónio. O rio não existia quando comprou os terrenos. Nem mesmo um ribeiro. Nada. Mas isso não o impediu de prosseguir o seu sonho. Mais a norte há uma ribeira afluente do rio Sado. Numa zona de vários montes foi construída uma barragem. Também construi-se um canal que vai buscar água a essa ribeira. Vai buscar tanta que o caudal da ribeira vai todo para a barragem e ainda vem água do Sado, mercê de umas obras engenhosas de desnivelamento o leito da ribeira a fim receber a água sadina. Portanto o nosso rio tem esta origem. A barragem serve para normalizar o caudal do rio. Isto a montante, a jusante, também entre montes, há mais uma barragem que permite que o rio tenha um caudal abundante. A água passando por essa barragem segue por um outro canal até ao Sado. Para além do nivelamento e manutenção do rio, as barragens também servem para gerar energia eléctrica.

O rio é algo sinuoso, como convém, mas permite haver uma praia e um espaço para praticar remo, para além de canoagem logo à saída da barragem norte. Houve em tempos uma discussão sobre a necessidade ou não de piscinas. O rio venceu.

Outro facto curioso relacionado com o rio é o seu nome: Fiona. Sim, o nosso rio tem um nome feminino. Houve grande celeuma nos primórdios da cidade. Obviamente que o Teotónio quis perpetuar em Silveira o nome da sua amada e também, a bem da verdade, a grande, quiçá principal, responsável, mesmo que indirectamente, pela existência desta cidade. Pois foi com o dinheiro que ela deixou como herança que isto tudo foi construído. Já que não foi dado o nome dela à própria cidade, ninguém conseguiu demover o Teotónio de baptizar o nosso rio com o nome da sua amada. As vozes machistas, que afirmavam ser inadmissível um rio, palavra masculina, ter um nome feminino, foram logo caladas com o nome do rio Guadiana.

Fiona teve uma existência conturbada no início. Então não é que a cidade dirigiu os esgotos todos para o rio (curiosa imagem para um rio com um nome tão significativo). Obviamente que rapidamente repararam que o belo rio que tinham à porta não era mais do que um feio esgoto. Feio e mal cheiroso, suponho eu. Grandes discussões no salão nobre da Câmara, nos restaurantes e pubs (em Silveira não há cafés como no resto do pais, americanices). Muito debate houve nesta cidade, curiosamente no tempo em que no país não havia debate e se alguém quisesse era preso. A clandestinidade tem as suas vantagens.

Como não havia solução alternativa, a cidade teve que criar um sistema de tratamento de esgotos. Não, não os enviaram para a foz do rio Fiona, não havia garantias que a poluição não fosse entrar na nascente, visto que o rio Sado corre de sul para norte. Eu sorrio sempre ao pensar nisso. O sistema foi do mais moderno para a altura e actualmente continua a ser dos mais avançados do mundo. Temos cinquenta anos de experiência.

A água consumida na cidade é obviamente do rio Fiona, devidamente tratada, logo extraída da barragem norte. Porão alguma coisa nela para agarrar os silveirenses ao doce remanso da terra natal? Isso não sei.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

5 – Um lamiré ao planeamento urbanístico silveirense

Então, como é Silveira? Foi construída num vale, circundado por montes, mais elevados do lado de Sabugal. Poder-se-ia dizer que se situa numa cratera de vulcão caso tivesse existido algum aqui. As ruas principais estão dispostas de norte para sul, situando-se o edifício da Câmara, onde trabalha o Mayor, no topo norte. Imaginado a cidade como um corpo deitado de barriga para cima, a cabeça estaria ligeiramente inclinada para a sua direita. Na verdade, todo o corpo faz como que um arco.

Há uma rua principal, onde se situa a cadeia anexa à Câmara. Bastante conveniente. Mais ainda quando a única funerária se situa entre esta e o grandioso hospital, que chega a estar uma semana sem doentes. Ah, povo mais saudável!

Ou seja, os principais edifícios administrativos e de serviços públicos estão todos juntos. Curiosamente o liceu, outro grandioso edifício, mesmo grandioso em relação ao tamanho e arquitectura, ora este edifício situa-se, pasme-se, no lado oposto da cidade. É evidente para todos que aquela gente, deambulando por esse espaço, é perigosa e barulhenta. Os altos e misteriosos destinos da nação silveirense não podem ser incomodados por essa gente perigosíssima. Do outro lado da cidade olhamos com desdém, mesmo desprezo, para essa discriminação. E não venham para cá com a história de que o liceu precisava de muito espaço, dando a entender que não havia na zona in da cidade. A cidade foi construída de raiz, projectada de uma só vez, bastava reservar um espaço, nem que fosse a meio da rua principal. Mas não, lá para o fundo se faz favor. E não pia. Também não se entende, não entendo, porquê que não há edifícios em frente à cadeia, à funerária e ao hospital. Admito que está bonita a rua ali naquela ponto, pois em frente está o rio. Mas do outro lado da margem, não há nada, só um arrozal e mais em frente um monte cheio de árvores. Tudo verde. Só verde.

O primeiro edifício oposto ao hospital é a igreja. Como a América é o berço da democracia, democracia e mais um montão de coisas que existiam há séculos, até milénios, mas que foram eles que descobriram. O que nós seriamos sem eles? Como são esse verídico berço, o nosso querido Teotónio determinou que fosse construída uma sinagoga ao lado da igreja (que pouco depois se transformou num banco por falta de adeptos e excesso que dinheiro silveirense [sim nós temos uma moeda própria, essa moeda mundialmente poderosa, com o singelo nome de Silva, uma Silva valia no início dois tostões: vinte centavos no tempo dos escudos e um cagagésimo no tempo dos euros]) e mais um espaço livre para mais alguma confissão religiosa que surgisse depois. Enfim, está tudo muito bem organizado.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

4 – O Segundo Grande Mistério de Silveira

Silveira situa-se entre a aldeia de Sabugal do Sado e o rio Sado. Estamos mais ou menos a meio do percurso do rio, numa zona oficialmente pouco habitada. Oficialmente nós vivemos todos em Sabugal. Como é que a autarquia, o governo civil, o governo, a GNR, o exército ou mesmo a CIA não descobriram isto? Não sei. Nem os órgãos de comunicação social. Soem as trombetas e rufem os tambores: este é o Segundo Grande Mistério de Silveira.

É um facto claríssimo que a cidade é um povoado clandestino. Não existe nos mapas, quaisquer que eles sejam. Um parente afastado meu (oitavo grau) fez tropa no Instituto Geográfico do Exército e procurou saber se Silveira constava dos registos. Nada. Um grande nada. Um deserto humano. Só campos, montados e arrozais.

Estaremos a viver para lá de algum portal para um mundo paralelo? Na realidade só existe uma única entrada para a cidade e terrenos circundantes, como se fosse, e representando, a entrada para uma grande herdade privada. Por que não considerar a hipótese de Silveira ser uma localidade situada num espaço paralelo ao real?

Mistério...

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

3 – O Grande Mistério de Silveira

A nossa relação com esta terra é estranha. Será de ódio? Será de amor? Serão ambos? Mas bem vistas as coisas Silveira é o nosso mundo, por sinal bem pequeno. Quem nasce aqui fica de tal maneira ligado, que tem havido casos de excelentes alunos no secundário preferindo não seguir estudos a sair.

No nosso grupo tem-se falado muito sobre isso. O que levará a tão estranho fenómeno? Para reforçar mais este mistério acrescente-se que a esmagadora maioria dos que saíram voltaram saudosos e rapidamente. Não é estranho? É o Grande Mistério de Silveira. Nome pomposo e com maiúsculas.

O que tem esta pequena terra para agarrar tão intestinamente os seus naturais? Será da água? A água que bebemos vem indirectamente do rio Sado (esta será uma boa história a analisar mais à frente). Será dos ares? Realmente há muito pouca poluição, se isto estivesse cheio de fumo, as pessoas talvez não quisessem cá viver... ou então não, Silveira deixaria de ser a cidade mais americana de Portugal para ser a mais tossidoura e por isso a mais barulhenta. Mais uma razão para sair e não voltar.

Será feitiço? O velho Teotónio seria alguma espécie de bruxo? Aprendera lá para as Américas algum voodoo poderoso, que aprisionaria a alma dos silveirenses aos escassos quilómetros quadrados da sua propriedade?

Já decidi há algum tempo: se conseguir entrar para a universidade, que vou querer ir para a de Braga ou mesmo dos Açores. Mas... mas veja-se a magia misteriosa a actuar, não consigo ver o meu futuro longe daqui. Mas por que raio será?

terça-feira, 21 de setembro de 2010

2 - Espinhos Narcisos

Quando alguém tenta ser um pouco diferente num meio pequeno, só arranja problemas. Foi o que me aconteceu com o trabalho escolar A Origem da Silveira. Criticaram-me por causa do “da”. Melindraram-se logo os lambe-botas do poder, chamar silveira à Silveira não é admissível. Este tipo de atitudes tornam a cidade num emaranhado de restrições que fazem faltar o ar a quem aspira ter uma existência mais desafogada. Criticaram o facto de não falar nada da história da cidade, pudera, a origem está no que deu origem e não nos factos mais importantes da grandiosa história desta importantíssima localidade. Queriam mais pormenores, mais factos e, sobretudo, informações mais exactas. Mas para quê? Isto é um mero trabalho escolar, que no máximo será lido pelo professor e alguns colegas, máximo dos máximos. Apesar de tudo consegui passar na disciplina e de ano, eu e meu grupo de amigos.

Eu sou o Beto, Alberto Manuel da Silva Galhardo. Sim, sou um membro dessa nobre e selecta família dos Da Silva, parente de quarto ou quinto grau do grande Teotónio, tal como os meus amigos Mike e Vanessa. Somos cada um a ovelha negra de cada um dos três ramos dessa família. Nós os três acabamos por não ser da mesma família, excepto se consideramos parentes entre o sexto e o oitavo grau, temos um trisavô comum. Mas há quem ache muita importância a isso. Nós, mais o Luís e a Joana formamos um pequeno, mas unido, clã nesta selva chamada Silveira.

Somos os Espinhos Narcisos. Nome de uma plantinha rasteira e chata, sobretudo para quem anda no campo e não tem cuidado onde põe os pés. O espinho narciso não chega a ter mais de vinte centímetros, as folhas são espinhos aguçados e tem uma flor amarelada. Faz lembrar aquela imagens microscópicas dos flocos de neve, só que com espinhos. Pois foi esse o nome que escolhemos quando tínhamos quinze anos e íamos entrar para o décimo ano. Tem tudo a ver com a cidade onde vivemos, espinhos – silvas, narciso – o enorme orgulho bairrista que impera por estas bandas.

O nosso pequeno clã caracteriza-se pela amizade que nos une. Não procuramos ser populares, não procuramos ser os líderes do que é que seja, também não procuramos destruir a cidade e suicidarmo-nos no fim. Simplesmente somos amigos, gostamos de estar juntos e apoiamo-nos mutuamente.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

1 - A Origem da Silveira

Era uma vez um homem chamado Teotónio da Silva, alentejano de beira Sado, que emigrou para os Estados Unidos da América no início do século XX. Tinha dezassete anos e emigrava fugindo dos pais e do patrão.

Por causa de um namoro descuidara-se da vara de porcos que tinha a seu cargo. Fora até à aldeia de Sabugal do Sado e deixara os porcos presos num redil debaixo de um sobreiro. Nessa noite o tempo estava propício a trovoadas e foi cair um raio logo no sobreiro que abrigava os porcos. Outros caíram nas redondezas, os animais que não morreram electrocutados pereceram com o incêndio que veio depois. Da aldeia, Teotónio percebeu que havia um incêndio para os lados do redil, correu lá. Não esperou ser responsabilizado, já vira por muito menos castigos bem severos. Numa corrida pela sobrevivência foi a casa arrumar os poucos pertences que possuía e num golpe de coragem correu à casa do patrão, entrou furtivamente, como sabia onde era guardado o dinheiro para pagar os ganhões, levou consigo o cofre onde era guardado.

Dois dias depois estava em Lisboa e embarcou no primeiro barco que encontrou no cais. Era um cargueiro que se dirigia para os Açores levando gado. Na ilha de São Miguel esteve pouco mais de seis horas, pois as autoridades estavam a pôr dificuldades à sua entrada na ilha, por ser menor. Mais uma vez fugiu. E a sorte levou-o até perto de um grupo de pessoas que se preparava para embarcar para um paquete. Aproveitou a confusão e entrou também. Quatro dias depois de o barco partir, no meio de uma tempestade, foi descoberto e passou o resto da viagem entre a casa das máquinas, onde pernoitava, e a cozinha onde ajudava nas limpezas. No dia em que o paquete aportou em New York, mais uma vez aproveitou-se da confusão e fugiu. Não seria a última fuga. A estadia de Teotónio da Silva nos Estados Unidos foi repleta de fugas e aventuras, dignas de um dia serem postas em livro.

Após várias peripécias a vida de Teotónio acalmou, estaria por volta dos vinte cinco anos. Aprendeu a ler e a escrever. Empregou-se na linha de montagem de uma fábrica de automóveis da Ford. Em cinco anos conseguiu chegar a mecânico operador de máquinas. Com esta habilitação conseguiu um lugar numa fábrica de têxteis numa pequena cidade de New England. Foi aí que conheceu a senhora Fiona Stratford Wildmore recém viúva do dono da fábrica Wildmore Weaving, Brian Jacobs Wildmore Junior. O casal Wildmore teve dois filhos, Brian Jacobs Wildmore III e Mary Jane Wildmore, na altura a entrar na adolescência.

Ao fim de cinco anos a trabalhar na fábrica, primeiro como operário, mas subindo de posto gradualmente, Teotónio conseguiu entrar em contacto com a Lady Fiona graças ao seu cargo de encarregado de amostras. Ela requisitara amostras para um vestido da filha e o nosso Teotónio foi destacado para tal. Nunca mais ambos foram os mesmos. Nasceu ali uma relação fortíssima, que permaneceu dois anos oculta. No entanto, o segredo acabou e o escândalo podia ter sido maior se não se estivesse a entrar nos loucos anos vinte, apesar de naquela cidade a abertura desses anos ter esbarrado com o conservadorismo local. Os filhos de Fiona nunca aceitaram a ligação da mãe com o português, muito menos o casamento deles. Abonando a favor de Teotónio fica a sua iniciativa de o casamento ser com separação de bens. Ele genuinamente entrava no casamento por amor e reconhecia que o património de Fiona devia ser dos filhos.

O casamento durou dezassete anos, Teotónio tinha cinquenta e quatro quando Fiona de setenta faleceu. O desgosto quase que levou também a ele à sepultura. Sabendo a diferença de idades o português foi fazendo um pé-de-meia como precaução para a viuvez, pois sabia que os filhos de Fiona fariam tudo para o verem longe. Grande surpresa surgiu a quando da leitura do testamento. Metade do património da senhora Fiona Stratford da Silva, correspondendo a dinheiro, obras de arte e um apartamento em Manhattan, foi destinado para o Teotónio, ficando o resto que correspondia à fábrica e restantes imóveis para os filhos. Estes tentaram em tribunal contestar o testamento, mas não tiveram sucesso.

Nas vésperas da Segunda Grande Guerra Teotónio veio para Portugal. Com o pé-de-meia que amealhara poderia se dizer que ia viver livre de vergonhas, talvez como dono de uma loja ou restaurante, mas com tudo o que herdou chegou à sua pátria como um milionário. Encontrou um país muito diferente dos Estados Unidos, muito mais atrasado económica e culturalmente. Passou um ano em Lisboa e após várias visitas à sua terra natal, comprou várias propriedades entre a aldeia Sabugal do Sado e o rio com a intenção de criar uma réplica da cidade onde viveu o amor da sua vida. O nome da nova terra era para se chamar Fiona, mas numa vitória da razão sobre a emoção resolveu chamar-lhe Silveira. E assim surgiu a cidade onde nós vivemos, que é mais pequena que a aldeia de Sabugal.

E foi graças a este brilhante trabalho que eu ia quase chumbando no ano passado na importantíssima disciplina do décimo primeiro ano de Cultura Cívica do Liceu Geral de Silveira.