terça-feira, 16 de novembro de 2010

18 – Meditações sobre o alvo

Estes versos estavam discretamente escritos na parede da loja do meu pai. Quase que consigo imaginar a pessoa junto à parede escrevendo com uma caneta de feltro. Desta vez não era graffiti, era mesmo uma mensagem discreta. Imagino que tenha sido escrita à altura da vista, pelo menos o primeiro verso. Se assim for, então a pessoa é mais baixa do que eu, talvez tenha uns cinco pés e meio.

Estive um bom bocado a olhar para o poema. Ninguém andava no Point. Cada vez mais me convencia a teoria de ser uma mulher a escrever tanto este com o outro poema. A caligrafia tentava disfarçar a verdadeira caligrafia, usava só maiúsculas. Os ós e os ás deixavam adivinhar uma letra feminina. O primeiro a de “para” e o a de a ”ali” saíram arredondados. Todos os ós e todos os pês eram tipicamente femininos. Apesar de ter escrito com previsível pressa, notei um certo amor no acto de deixar a mensagem. Senti carinho por essa desconhecida que devo conhecer, nem que seja de vista.

É difícil de entender este acto, neste local e neste momento. Se o outro poema estava bem à vista, querendo dizer ao mundo e ao seu amado o quanto amava, escondendo-se é certo no anonimato de uma parede, da segunda vez é diferente. O mais certo é que só meia dúzia de pessoas, claro que mais, irão ver a mensagem. Sobretudo naquela noite. Como é que ela podia saber que o seu amado ia passar a altas horas da noite naquele sítio e, ainda por cima, reparar naqueles seis versos? Ok, devia saber que ele ia passar por ali.

“corro antes que a festa acabe”

Parece óbvio que ela escreveu já relativamente tarde, talvez perto a meia-noite. Parece-me que a essa hora devia haver pouca gente a passar por ali. O final da festa tinha fogo preso como garante de não haver ninguém nessa altura a circular. Quem andou nas ruas da cidade, andou mais cedo ou logo depois do fogo. Uma coisa é certa, o número de destinatários diminuiu drasticamente. O final da festa teve muito menos gente do que duas horas antes. Lembro-me de ter comentado com o Mike que o pessoal estava a pensar ver o fogo pela televisão no quentinho da casa. O fogo preso foi o normal, mais do costumeiro. Pouco depois não se via ninguém no Hide Park, excepto quem pertencia à organização. Era suposto o Mike ter esperado por mim, mas ele teve uma emergência. Disse-me que tinha que aquecer uma cheerleader, a tal lourinha que pretendia conquistar, antes que ela entrasse em hipotermia. Ainda há pessoas altruístas. Os outros já tinham partido.

Então ela deve ter escrito aquilo por altura do fogo. Uma percentagem considerável dos resistentes nem passaria forçosamente por ali, muito menos a pé. Como é que ela teria a certeza, e parece ter, de que o alvo da mensagem seria atingido? Fiz um esforço para recordar a maioria das pessoas que estavam a ver o fogo ou a trabalhar. Poucas pareceram-me cumprir as condições para serem o alvo.

De repente dei um salto na cama que me levou ao chão. Estivera a pensar intensamente até às três e meia da manhã e veio-me entre o sono e a vigília a ideia de que o alvo podia muito bem ser eu. Bati com a cabeça na mesa-de-cabeceira, até vi estrelas, e dei uma joelhada no chão fazendo-me ver galáxias inteiras.

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