sexta-feira, 17 de junho de 2011

79 – Hora H?

Quem nos veio abrir a porta foi a própria Joana. Ficou espantada por nos ver ali. Obviamente que a Vanessa não estava. Entrámos para a sala. A mãe veio cumprimentar-nos e subiu ao piso de cima. Contámos a cena na casa do avô Capuchinho. Ela ficou pensativa e por fim disse:

- Na verdade não devia surpreender, todos sabíamos que o Conselho Municipal ia requerer a prova genética... seria o que eu faria... por isso, não me espanta.

- A Vanessa ficou assim porquê? – Perguntei eu. – Tenho estado a pensar e não vejo uma razão forte para ficar chateado com a Clarissa só porque não nos disse nada.

- Ai não vês? – Disse o Mike olhando para mim admirado.

- Não... quer dizer, acho que não... sei lá. Que me importa saber se ela deu o sangue na segunda-feira ou amanhã!

- Ela não pode ter dado amanhã.

- Man, deixa de ser picuinhas. É forma de falar. Pouco me importa se ela deu o sangue na segunda ou ontem! Satisfeito?

- Vá, não se zanguem.

- O Beto, hoje está estranho.

- Lá estás tu...

- Meninos! Vamos lá, nada de picardias agora. – Fez uma pausa. – Eu também estou como o Beto, não me importa se ela fez e não nos disse nada. Afinal só fomos ter com ela quatro dias depois. Ela é porreira. Quem me preocupa é a Vanessa. Está a passar uma fase muito difícil.

- Não fazes ideia para onde terá ido? – Perguntou o Mike todo condoído. (Espero não fazer figuras destas, tenho que ter cuidado)

- Para aqui não veio... talvez tenho ido para casa.

- Eu não te disse? – Dei-lhe uma palmada no ombro.

- Então vou lá. – Ergueu-se logo num salto, assustando-nos. Perto da porta, voltou-se. – Talvez seja melhor vocês irem à Câmara, pode ser que tenha ido ter com os pais.

- E porquê que ela iria lá? – Perguntei, não venho lógica nessa hipótese, afinal ela estava assim por causa deles.

- Sei lá. Talvez para ir buscar uma chave da casa... - Não nos deu tempo para resposta. Saiu disparado.

A Joana disse-me que seria muito estranho a nossa amiga não trazer a chave consigo. A alegria por estar na presença da minha amada não ajudou nada na concentração no que dizia. Mesmo assim lembrei-me da hipótese de algum vizinho ter uma chave de reserva ou de pura e simplesmente alguma porta estar aberta.

Este estado de espírito não era o ideal para estar na presença dela sem estar a beijá-la. Devia declarar-me logo ali, neste momento. Joana gosto de ti. Convenci-me que eras a autora dos poemas escritos na cidade e que escrevias para mim.

terça-feira, 14 de junho de 2011

78 - Perseguição

Uma pergunta se impunha: para onde íamos? A Vanessa saíra da casa do Dr. Capuchinho, mas não nos dissera para onde ia. Para casa? Pareceu-me possível, mas quando expôs ao Mike tive como resposta:

- Achas que ela ia querer estar em casa sozinha? Fragilizada como está?

- Ela está fragilizada?

- Beto, hoje não dás uma para a caixa. Então não viste o estado em que ela estava quando fugiu?

Tive que concordar. Estava mesmo quase a chorar, mas isso não me parecia indicador suficiente para dizer que não tinha ido para casa. O Mike acrescentou quando estávamos a chegar ao cruzamento onde estivera o poema no chão:

- Ela vai precisar de desabafar com alguém. E esse alguém só pode ser a Joana. Tens reparado que ultimamente elas têm andado mais juntas?

Não respondei, mas realmente pouco tenho reparado na Vanessa. Há uma semana que só tenho olhos para a Joana. Se ele reparou, é porque só tem tido olhos para ela. Não há dúvida.

Com o meu silêncio ficou definido o próximo sítio onde ir. Continuámos pela Teotónio da Silva Street até ao ponto em que curva para ir desaguar, alguns cruzamentos a diante, na Main, já perto do Liceu. Nesta curva há uma passagem entre duas moradias que nos leva para fora da zona residencial. Há um olival e por ele um atalho que nos permite chegar à zona sul com rapidez. Todos na cidade conhecemos este tipo de atalhos, se a Vanessa dirigiu-se para a casa da Joana, terá sido por aqui que passou. Algo me dizia que ela não tinha vindo para estes lados. Não quis estar a contrariar o Mike, a cidade não é assim tão grande. Numa hora acabaremos por encontrá-la. No entanto acho estranho não a termos encontrado no atalho, mesmo ela correndo não tinha um avanço assim tão grande, nós viemos atrás dela pouco tempo depois. Para quê chatear o Mike?

E assim lá passámos o olival, entrámos no caminho de terra batida que contorna a cidade deste lado. Depois de um pequeno vale e de uma curva à direita avistámos para nascente os primeiro telhados da zona sul. Entrámos no primeiro caminho à esquerda que leva-nos para um beco que começa no início da rua da casa da Joana. Uma cão no quintal à direita começou a ladrar à nossa passagem. O Luís há tempos teve que correr e trepar a uma oliveira, pois este rafeiro tem um feitiozinho proporcional ao seu tamanho, tem quase a envergadura de um serra da estrela. Felizmente os donos estão sempre por perto.

E assim em menos de dez minutos, porque ainda parámos para esclarecer os sentimentos do Mike, chegámos à casa da Joana e nem sinal da Vanessa.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

77 – Solidariedade interesseira

Com eu já estava habituado à ideia de gostar de uma rapariga do nosso grupo, não me chocou a ideia de o Mike gostar da Vanessa. Ele pelos vistos ainda não tinha percebido. Deixei o meu interior rir à gargalhada, afinal quem é que era mais imaturo?

Como sinal de inconformidade ele recomeçou a marcha. Desta vez consegui manter o mesmo ritmo. Estive quase a abri-lhe o meu coração, mas algo me disse para não o fazer já. Afinal o rapaz acabara de descobrir-se apaixonado por uma das suas melhores amigas.

- Olha Beto, tu estás enganado. Não é possível eu...

- Tens ou não tens andado a pensar muito nela ultimamente?

O silêncio dele confirmou as minhas suspeitas. Quando ele ia abrir a boca, eu disse:

- E não venhas agora dizer que foram tantas vezes, que estiveste a contá-las agora.
Qual é o mal em gostares dela?

- Tem muito mal. Vai acabar com o nosso grupo.

- Porquê?

- Porque... porque... não vai voltar a ser a mesma coisa, nunca mais.

- Mike, - pousei a minha mão esquerda no ombro direito dele - se for para que tu tenhas finalmente uma namorada a sério, acho que vale pena.

É claro que eu quero que isso aconteça, que ele tenha uma história de amor feliz com a Vanessa. Os dois estão muito bem uma para o outro. Nem sei como ninguém se lembrou disso antes. Mas devo confessar que as minhas intenções estão manchadas com algum egoísmo. Desejo que a história deles funcione para que a minha possa vir a funcionar também. Os espinhos também se reproduzem.

terça-feira, 7 de junho de 2011

76 – A conversar nos entendemos

- Mas de raparigas já entendes. Certo?

- Meu, estás a brincadeira? És mesmo criança.

- Olha ele a chamar-me criança. Eu sou mais velho dois meses.

- Mas eu sou mais maduro.

- Vê-se. Se fosses, não dizias que não entendes as mulheres.

- Por ser mais maduro é que o digo.

- Tu estás parvo.

- Criança...

- Pois... mas afinal o que se passa?

- É pá, não sei. Tu estavas lá. Elas estavam a discutir. As coisas azedaram e a Vanessa saiu.

- E nós viemos atrás dela. O que há para entender?

- A Vanessa.

- A Vanessa?

- Sim.

- Então?

- Então o quê?

- O que é que tem a Vanessa?

- Pois é isso que eu queira saber.

- Ahn?

- Afinal quem está parvo és tu. Eu pergunto-me o que é que a Vanessa tem? Ela anda estranha há algum tempo.

- Ah! Isso.

- Também reparaste?

- Eu posso ser mais infantil, mas não ando cego.

- Pois.

- Eu acho que anda assim por causa da mãe dela. Sabes como ela é. Bem a viste há pouco, antes do almoço. Aquilo dá cabo de qualquer um.

- Não sei. Há algo mais.

- Achas?

- Ás vezes, quando fala comigo, parece estar a cobrar-me alguma coisa.

- Ficaste a dever-lhe alguma coisa?

- Acho que não. Não me lembro de ter alguma coisa emprestada por ela ou dinheiro.

- Se calhar, tu que és tão entendido em mulheres, fizeste-te a ela e...

- A ela? Nunca.

- Não te terás esticado com ela?

- Não... quer dizer... acho que não...

- Apanhaste alguma bebedeira ultimamente?

- Tu bem sabes que não. O meus pais matavam-me. Não, não pode ter sido isso.

- Se calhar sorriste-lhe alguma vez de uma forma menos de amigo...

- Lá estás tu. Mas tu julgas que eu faço-me todo o rabo de saia?

- Queres que te faça uma lista?

- Vá. Vamos falar a sério. Ando preocupado com ela.

- Desde quando?

- Eu preocupo-me com os meus amigos.

- Só te fica bem, mas esta preocupação com ela é de amigo?

- Claro, havia de ser de quê?

- Também te preocupas com a Joana?

- Com ela é diferente.

- Porquê?

- Ora, porquê? Porque sim.

- Bela resposta. Estás a ver? Se calhar a tua preocupação não é só de amigo.

- Claro que é. Eu... eu, só conheço a Vanessa há mais tempo. Só isso.

- Hum... se fosse a ti, pensava melhor. A Vanessa é uma miúda gira, nunca lhe conhecemos um namorado. É esperta, talvez te fizesse bem namorares com uma mais inteligente do que o habitual.

- Pára com isso, meu. Não quero confusões com ela.

- Só há confusão se tu provocares. Se a tratares de forma diferente das outras, não há confusão.

- Mas quem é que disse que eu quero andar com ela?

- Digo eu por ti. Está na cara, vejo agora claramente, que gostas dela. Lembro-me de sexta-feira depois de virmos da loja do meu pai. A tua maneira de estar ao pé dela... como é que não percebi na altura?

- Estás parvo? Eu e a Vanessa? Não é possível. Nós somos amigos.

- Mas tu próprio disseste que te preocupas com ela... e eu acrescento: de forma diferente da Joana. Está clarinho, estás apaixonado pela Vanessa.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

75 – O Mike e os meus pensamentos

Durante algum tempo, que me pareceu muito, mas deve ter sido mais ou menos meio minuto, ficámos eu e o Mike em silêncio naquela luxuosa sala de estar. De repente o luxo deixou de atrair. A temperatura terá caído em segundos? Éramos dois seres estranhos ao cenário. Retratos, lareira, candelabro, sofás e restante mobiliário, o fofo tapete, reposteiros e a pouca luz por eles coada. Um casaco por ali abandonado, levemente familiar, dava um toque de melancolia a mais ao nosso estado de espírito.

Como se o tempo tivesse voltado ao fluir normal, a voz do Mike soou-me demasiado alta.

- Meu, vou atrás dela.

Segui-o. O que fazer? Ficar? Para quê? O ambiente estava péssimo e a Clarissa talvez não apreciasse muito a minha companhia. Mais, o meu lugar é com os meus amigos que estejam com problemas. A Vanessa precisava de todos nós. E... afinal o que a Clarissa foi fazer lá a cima? Ah, sim, foi ver o papel da análise genética.

As passadas do Mike eram largas. Como levei algum tempo a atingir o ritmo dele, deu para reparar em como ia tenso. Os meus pensamentos ocupavam-se com outra pessoa. A Clarissa. Como me situar perante o facto de ela ter feito a análise e não nos ter contado nada? Teria obrigação? Estávamos a construir uma amizade, se nos tivesse contado mudaria alguma coisa? E agora? Tantas perguntas, mas nenhuma resposta em parte porque o Mike virou-se para mim e perguntou:

- Beto, o que é que acabou de acontecer? – Ele parou e ficou a olhar para mim. Deu-me vontade de rir. Apoiava-se na perna esquerda, a outra ligeiramente adiantada. Mãos nas ancas. Rosto preocupado. – Juro-te que não entendo as mulheres.

Ora aí está uma revelação bombástica: o grande Mike não entende as mulheres!

terça-feira, 31 de maio de 2011

74 – O verdadeiro rosto

Eu não sabia o que pensar. Afinal porquê que estava a haver aquela discussão? O Mike olhava intensamente para a Vanessa que parecia acossada. A Clarissa parecia desorientada quando falou:

- A tia não sabe se a reunião na Câmara é sobre mim ou sobre os graffitis.

- Ora, minha querida. Vivemos em que mundo? Mesmo que este sítio seja... digamos... peculiar, mesmo assim o que é verdadeiramente importante, é tratado com a devida importância. Rabiscos numa parede são o que há mais.

- Não aqui. Nesta cidade isso é invulgar e se há uma insinuação sobre o Mayor, mais ainda.

- Querida, tenho quase a certeza que o motivo da reunião é sobre a menina.

- Mas como é que pode ter a certeza? – A Clarissa dava sinais de impaciência e desespero.

- Tenho razões para isso.

- E não vai dizê-las?

- Não nos precipitemos... – A tia encaminhou-se para a porta com um andar arrastado. Visivelmente estava a apreciar o momento.

O Mike desviou o olhar da Vanessa para a tia da Clarissa e perguntou:

- De onde lhe vem a certeza que de que a Clarissa é neta do Sr. Teotónio?

Ela olhou-o de alto a baixo, avaliando-o e com um ar displicente respondeu:

- O menino está a par dos documentos apresentados?

- Sim.

- E ainda tem dúvidas?

- Para mim tanto me faz. – Encolheu os ombros.

- Sabe minha querida – virou-se para a sobrinha – devia ter escolhido melhor as suas amizades. Nesta... nesta localidade só tenho visto gente alienada, como aí o rapaz, ou alucinada, como a mãe ai dessa menina. – Indicou com o queixo a Vanessa. Caminhou para a porta, abriu-a e voltou-se olhando para cada um de nós. – Já que a menina foi afectada pela falta de inteligência das pessoas desta coisa chamada Silveira, lembro-lhe que provavelmente a reunião foi marcada assim de repente porque chegaram os resultados da análise ao ADN da menina.

- Já?

- Querida, foi na segunda-feira passada. Estou certa que o Dr. Capuchinho deve ter mexido os seus cordelinhos para despachar a análise.

- Já fizeste a análise ao ADN? – A voz da Vanessa recuperara alguma da humanidade. – Porquê que não nos disseste?

- Ah, a menina não contou aos seus amiguinhos? – Mais uma expressão falsa da tia, que me meteu nojo.

A Clarissa não sabia o que dizer. Encarava ora a Vanessa ora cada um de nós. Estava verdadeiramente perdida, sem norte. Não sei o que sentir perante esta revelação. Será motivo de aborrecimento não nos ter contado que já tinha feito a análise? Para uns talvez fosse grave, para outros nem por isso. Afinal essa era uma das coisas faladas há oito dias.

A Clarissa passou as mãos pela cara, subindo à testa e alisando o cabelo até à nuca. Pôs as mãos nas ancas e baixou a cabeça.

- Não acha que levaria mais tempo?

- E se a menina fosse ver o documento que ficou em seu poder? Lá deve dizer.

Uma luz, que só posso interpretar de esperança iluminou o rosto da priminha. Saiu da sala a correr. Ouviram-se os passos de corrida escada a cima. A tia tinha uma expressão de censura.

- E lá vai ela. Não há maneira de se comportar condignamente.

- Deve ter aprendido consigo. – Dei por mim proferindo esta frase com todo o ódio que sentia por aquela mulher.

- Ai, não deve não. Sabe, fedelho, vocês estão a precisar de aprender umas coisas, mas não será comigo. Isso garanto-vos. E não façam essa cara de inocência. Ambos sabemos que o velho Capuchinho os pôs aqui dentro para amolecer a minha sobrinha. Mas garanto-vos que desta guerra só haverá uma vencedora. Eu. – Agora sim, o verdadeiro rosto da Bernarda revelou-se. – Por isso, sugiro que façam as vossas malinhas e saíam das terras da minha sobrinha, se não serão corridos como a alucinada mãe da fedelha aí foi no outro dia.

Saiu da sala e dirigiu-se para as escadas. Ao pisar o primeiro degrau disse:

- Oh, gentinha medíocre!

Ficámos na sala em silêncio e em choque. O ódio daquela mulher magoou-me. Mais, o meu próprio ódio por ela queimava-me a garganta.

Sem aviso, a Vanessa correu para fora da casa não nos dando tempo para uma reacção pronta. Tenho a certeza que ia a chorar.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

73 – Às vezes tanta frontalidade e honestidade metem-me nojo

A minha alma estava parva. Como é possível alguém ter tanta bazófia? A Clarissa deve ter pensado o mesmo.

- A tia está a ser, no mínimo, um pouco indelicada com as pessoas que nos estão a dar hospedagem.

- Ora querida, é do interesse deles tratar-nos bem. Afinal somos os donos disto tudo.

- Somos? Onde é que a tia entra como herdeira?

- Ah, começo a reconhecê-la. Claro que a menina é a herdeira. Eu... eu somente sou a sua tutora.

- Nada lhe dá o direito de ser indelicada.

- Claro, que não, querida. Não era essa a minha intenção. Eu somente comentei a possibilidade de este problema ser em breve resolvido. Ao que pude ver os dirigentes desta... localidade, estão reunidos. Só pode significar uma coisa... estão a chegar à conclusão que a menina é a herdeira do dono destas propriedades. A única herdeira.

- E o que é que isso muda?

- Ora, querida, tudo. Não era a menina que sonhava ter uma quinta? Fazer agricultura biológica? Viver em contacto com a natureza? – A expressão da Clarissa carregou-se muito, já a tia parecia uma santa a falar. Nunca vi tão má representação. – Os meninos sabem? – Dirigiu-se para nós, ignorando a Vanessa que parecia muito perturbada. A Vanessa ora olhava para ela, ora para a tia. – Quando descobrimos a herança, nós as duas fizemos muitos planos. Tamanha fortuna devia ser aplicada em benefício de mais pessoas para além de nós. Nós somos pessoas simples. Muita gente, muitos pobres irão beneficiar desta herança. A Clarissa projectou a criação de um albergue para sem-abrigos. Não foi querida?

- Esses sem-abrigo, seremos nós? – Perguntou a Vanessa com lágrimas a despontar.

- Não ligues ao que a maluca da minha tia diz. – Aproximou-se da Vanessa, mas esta recuou para junto da janela, encostando-se ao reposteiro. – Nada está decidido. Nem...

- Já falas como dona de tudo. – A voz da Vanessa era sumida, ouviu-se algo como se fosse um guincho. Senti o Mike a dar um passo em frente.

- Mas claro que é a dona. – A tia devia estar a divertir-se. – Nem outra coisa nos passa pela cabeça. A Clarissa é neta legítima do Teotónio da Silva. Mas não fique perturbada querida... Vanessa... a Clarissa nunca falhou aos seus amigos. A menina certamente não ficará sem casa.

- Tia, pare com essa conversa!

- Clarissa, estou a começar a ficar aborrecida consigo. A menina tem que ser honesta com os seus amigos. Não lhes venda a ilusão de que tudo vai ficar na mesma, porque não é possível.

- A tia pare com essa conversa, está a distorcer tudo.

- Não estou nada. Eu só não quero que os seus amiguinhos estejam iludidos ou criem falsas esperanças. Eu sou muito frontal. A menina é dona destas propriedades. Propriedades onde eles e as suas famílias vivem ilegalmente. Tanto perante a menina, legitima proprietária, como perante as autoridades do país. E isso já a envolve a si directamente. Se as autoridades descobrem esta ocupação ilegal, é a dona das terras que será primeiramente responsabilizada. Eu acho que tendo a menina amizades aqui, devia avisá-los para os perigos e para a inevitável necessidade de eles procurarem habitação noutro lugar. A menina não se pode dar ao luxo de ter toda esta gente nas suas propriedades sem as formalidades legais necessárias. Esta situação está em violação de diversas leis. Antes de chegarmos cá já sabia disso. Já tínhamos falado nisso diversas vezes. A menina sempre foi defensora da legalidade.

- Tia, não distorça as coisas.

- Não estou a distorcer nada, querida. Temos que ser frontais e honestos. Esta cidade terá de ser demolida. A menina bem me tinha dito isso antes de chegarmos. Ter uma cidade totalmente ilegal nas suas propriedades vai contra todos os seus princípios.

terça-feira, 24 de maio de 2011

72 - Urbanização

Depois deste começo meio atribulado lá nos encaminhámos para a casa do Dr. Capuchinho em harmonia. A caminhada, como já deu para perceber, não foi longa, já que nesta cidade nada está muito longe. Uma rua, outra, um cruzamento e já estamos a chegar. Mais uns passos naquela pacata artéria e a bela casa do avô da Joana mostrava-se ao pouco sol que despontava por entre as nuvens. Depois de uma manhã de nevoeiro estava a começar uma tarde de tempo instável, algum vento, abertas e ameaços de aguaceiros.

Se o ambiente climatérico apresentava-se incerto, algo revolto, o clima que fomos encontrar dentro de casa não estava melhor. A dona Maria abriu-nos a porta com o semblante carregado, mas não nos disse nada. Também não foi preciso. Antes de entrarmos na sala de estar ouvimos a voz da Clarissa:

- Tia, estou a ficar farta desta conversa.

- Ai, a menina hoje está tão susceptível!

A discussão, ou conversa animada, teve uma pausa com a nossa entrada. A Clarissa e a Vanessa estavam de pé. A sobrinha em frente da tia, que permanecia sentada, e a visita perto da janela com cara de caso. Também de medo ou vergonha, não sei bem. Nunca é coisa boa de se ver uma discussão familiar. A tia foi rápida a dar-nos as boas-vindas:

- Ah, chegaram mais uns quantos do gang. – Olhou para a porta como que à procura de alguém. Sempre sentada. – Então, o namoradinho? E a coisinha? Não vieram?

Coisinha? Oh, hoje o dia está a correr lindamente! Como é que aquela carcaça falsamente recauchutada ousa chamar de coisinha ao melhor ser do universo? Felizmente para aquela... aquela... nem sei o que lhe chamar sem baixar o nível, felizmente para ela a Clarissa interveio.

- Tia! Isso são modos? Não trate assim os meus amigos!

- Oh, querida, entendeu tudo mal. – Então e eu, entendi como? – Não me lembro como se chama a outra menina. – Sorriu, mas nunca se viu sorriso mais falso à face da terra. – Do fundo do meu coração lhe digo que fico feliz por fazer amigos aqui nas suas propriedades...

- Lá está a tia... – A Clarissa devia estar a desesperar. Virou as costas à tia e afastou-se um pouco. Esta levantou-se insinuante.

- Mas querida... esta urbanização foi construída nas suas propriedades. Convém ter boas relações com as pessoas que aqui vivem, não é? – Virou-se para nós com a expressão de sinceridade e inocência mais falsa que vi. E já vi muitos filmes mal representados.

Houve um pequeno silêncio. A Clarissa voltou-se para ela com uma expressão de riso carregada ainda de irritação.

- Urbanização? A tia chamou a esta cidade urbanização?

A tia riu-se.

- Claro, querida. Você e eu já viajámos alguma coisa para sabermos que isto aqui de cidade tem pouco. Vá, concedo que seja uma vila, mas querida... isto é tudo ilegal. Nada disto está registado nos registos, nas conservatórias. Cidade? Oh, por favor!

sexta-feira, 20 de maio de 2011

71 - Medo

Para começar fiz bem em não vestir o casaco. O Mike veio ter comigo e passando o braço direito por cima dos meus ombros, deu umas palmadinhas no meu estômago.

- Então, Betinho, temos a barriguinha cheia?

- Ó, se tenho. Estou cheio até aos cabelos com a Bia.

- Ah, a pequena Beatriz chateou-te. Tadinho.

- Ouve, lá, meu, andaste a beber? Estás a usar muitos diminutivos.

- Desculpa, desculpa. Não precisas de usar palavras com tantas sílabas. Já percebi que estás chateado.

Mas o que se estava a passar? Antes do almoço o Mike brindou-nos com belas alarvices, agora depois de comido brinda-me com diminutivos e a palavra silaba, coisa rara saída daqueles lábios. E o pior é que o abraço viera para ficar. Manteve-o mesmo quando começou a caminhar em direcção da rua. Como ele é maior do que eu, fui levado. Devia ter uma expressão de espanto ou estranheza, pois parou e largando o abraço encarou-me.

- O que foi, meu?

- Isso pergunto eu. Estás estranho.

- Eu? Tu é que estás.

- Não. Não é novidade eu ficar chateado com a Bia, mas tu...

- É pá, um gajo já não pode estar bem disposto depois do almoço? Estás mesmo a ser a alegria da festa.

- É pá, desculpa, mas apanhaste-me ainda bastante furioso. Desculpa.

Medo. Estou a deixar que o meu peso na consciência me denuncie. Realmente o Mike é um rapaz geralmente bem-disposto. Gosta de comer, sobretudo a comida da mãe dele. Em segundo lugar fica a comida da minha mãe. Não me lembro da ultimamente ele ter andado menos alegre do que este exemplo. Eu é que estou diferente. Medo. E não é só por causa do graffiti em frente à igreja, nem só por causa do peso no bolso e na consciência, a Joana, ou o que sinto por ela, está a transformar-me. Neste assunto da Joana a hiena não foi tida nem achada. Emigrou. Pela primeira vez posso dizer que estou apaixonado. Quando a hiena imperava era mais diversão do que sentimento, mais show-of do que real interesse.

- Meu, tu é que me pareces diferente. Desde que começaste a ir à missa... estás diferente.

Raios! O meu melhor amigo, a pessoa que melhor me conhece, começa a ver a minha transformação… medo!

terça-feira, 17 de maio de 2011

70 – O que fazer, meu Deus? O que fazer?

A lata de tinta pesava-me mais na consciência do que no bolso. Mas vamos ser racionais. O peso na consciência não é por causa de algum remorso, e devia, nem porque compreendera que fizera algo de errado, que fiz, deve-se simplesmente ao medo de ser apanhado. Seria exposto perante a cidade, teria um montão de pessoas à perna. Sem contar com os meus pais, teria o Mayor, o Dr. Capuchinho, pai e filho, todos os membros do Conselho Municipal, o Xerife e os adjuntos, a Natércia que não perderia a oportunidade para humilhar a família Ventura, todos os bem e os aspirantes. Pior, talvez nem a Joana me perdoaria, apesar de ela talvez estar no mesmo barco, mas nunca a denunciarei. Nunca.

Por isso foi com angústia que me vi sozinho nas traseiras da minha casa, fugindo das mulheres da família. Nem quero imaginar o ambiente em casa depois de desmascarado. Tinha que me livrar a lata de tinta. Olhei em redor. Vi o Mike a acenar da sala, que se via pela porta da cozinha, pedindo cinco minutos para acabar de comer, adivinho eu, uma musse de chocolate, sobremesa frequente à mesa dos Sousa da Silva. Na minha casa consegui ver a Isabel a comer à colherada uma metade de papaia, fruta recentemente introduzida na dieta familiar pela mão desta minha irmã. Se comi uma vez foi tanto.

Ok, não podia despachar naquele momento a porcaria da lata. Para mais que não havia caixotes de lixo nas ruas. Sendo domingo, logo cedo os donos dos dito caixotes arrumaram-nos. Só na noite de segunda para terça é que serão postos ao relento. Não tenho tempo nem oportunidade para me escapulir até à loja e deixar a lata algures misturada com as outras.

Senti naqueles minutos de espera indecisão e angústia, devia desfazer-me imediatamente daquele peso. Peso físico e peso de consciência. Para piorar não sabia se devia vestir o casaco ou andar com ele embrulhado no braço.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

69 – Eu e as mulheres da família

O nosso almoço em família foi tristonho, o meu pai esteve o tempo todo no Conselho Municipal e a minha mãe não conseguia esconder a preocupação.

- Mãe, - disse-lhe eu – o que de mal poderá vir desta reunião?

- Não sei, Beto, mas afligem-me estas reuniões repentinas

- Será que estão a discutir se a Clarissa é neta ou não do Sr. Teotónio?

- Tu estás muito interessado nessa Clarissa... – Disse com veneno na voz a minha irmã Beatriz. – Pelo que sei tens andado muito na companhia dela... a visitá-la... e tudo... É tua namorada?

- Bia, és mesmo anormal...

- Beto! – A minha mãe repreende-me sempre que sou mais indelicado com a Beatriz, mas a miúda tira-me do sério. Ela já teve o desplante de me dizer na cara, que sendo mais nova quatro anos, quatro, é mais madura do que eu porque as raparigas amadurecem mais cedo. Já viram isto?

- ... nessa tua cabecinha só cabem namoricos e paixonetas. Nesta história há algo mais importante que namoros.

A Isabel ria da nossa discussão. Ri-se sempre. É sinal que a Beatriz ou eu a deixámos em paz. Mesmo a rir, lá ajudou à festa:

- Mas lá que tens andado com ela, tens.

- Pois tenho. Ela está hospedada na casa do Dr. Capuchinho e ele pediu-nos para lhe fazermos companhia.

- E como é que chegaste ao conhecimento do Dr.? – Perguntou a minha mãe surpreendida.

- Através da neta, o pai não contou? A neta Joana é nossa amiga, minha, do Mike, da Vanessa e do Luís.

- Qual Luís? – A Isabel andava de namorico com um Luís, mas não é o nosso.

- Luís Peixoto, primo da Vanessa, filho do Abílio Peixoto, o proprietário. Sabes quem é?

A três mulheres da minha família disseram ao mesmo tempo um “ah” de reconhecimento. Seria difícil haver alguém na cidade que não conhecêssemos.

- Muito bem relacionado, sim senhor. – Comentou a Isabel. – Combinação estranha, mas os tempos nesta cidade andam estranhos...

- Bem visto, Bel, - A Beatriz estava a irritar-me com as maneiras de menina crescida dela, já de pequena senhora – parece que o Beto e o Mike lá conseguiram furar por entre a carapaça do provincianismo e ascender a um nível superior. – Se a Beatriz conseguir entrar nos Bem, não sei o que faço. Mudo-me para a casa do Mike!

- Alegra-me a alma constatar constantemente que insistes em ser uma fedelha insuportável e nojenta. – Disse eu levantando-me da mesa. Quando cheguei ao lava-louça com o meu prato, talheres e copo já tinha ouvido a minha mãe dizer:

- Alberto! Pede já desculpa à tua irmã!

A ferver por dentro, nem sei bem o que pensei ou quis fazer. Fiquei um minuto a olhar para o lava-loiças à espera de explodir. Não aconteceu. Surpreendentemente a minha mente ficou desanuviada assim que me lembrei da lata de tinta para frigoríficos. Se alguém, por exemplo a minha querida irmã mais nova, a descobre não bastará ir viver para a casa do Mike, talvez nem no país poderia ficar. Reorganização de prioridades. Dirigi-me à mesa e encarei a Isabel.

- Beatriz, peço desculpas pela minha linguagem. Como bem sabes, o meu desenvolvimento emocional e intelectual não ultrapassa o de uma miúda de sete anos. Por isso deixo para ti a adulta tarefa de lavar a loiça. Eu vou brincar.

Peguei no casaco, ainda com a lata a fazer peso e fugi literalmente de casa. Mesmo assim deu para ouvir as gargalhadas da Isabel e os gritos de indignação da Beatriz. A minha mãe deve ter exclamado o meu nome, mas não cheguei a ouvi-lo.

terça-feira, 10 de maio de 2011

68 – Gentilezas

A Vanessa acabou por ir almoçar com a Clarissa. A minha Joana também se ofereceu, mas o argumento da neta do senhor Teotónio foi mais forte: a dona Maria faz mais comida. Cada refeição naquela casa é quase um banquete. A tia Bernarda queixava-se muito de que o dona da casa queria expulsá-las da cidade através do excesso de comida. Ela há anos que lutava para não engordar e agora sempre que descia à sala de jantar, só de olhar para a mesa, engordava. E muito, já que a dona Maria é uma excelente cozinheira.

Por entre os nossos risos a própria Clarissa confessou ter aumentado de peso, mas não se importava. Desde que vivia com a tia andava mais magra do que desejava. Nesta semana silveirense ainda não chegara ao peso ideal, mas já aumentara um pouco.

- És um espanto, Clarissa. – Disse embevecido o Luís, desta vez até eu vi. – A maioria das raparigas não quer engordar.

- Fiquem descansados, assim que eu chegar meu peso normal, fico igual a todas as outras...

Neuróticas pelo peso e pela gordura, pensei eu. Tenho duas irmãs lá em casa, mais a minha mãe, bem sei o que é essa neurose. Mas enfim...

- Serás sempre especial. – Concluiu o Luís.

Meus amigos, nem tanto ao mar nem tanto à terra. Agora só falto eu ajoelhar-me e declarar o meu amor pela Joana. Por favor! Mas bem vistas as coisas talvez tivesse sido melhor. Cheira-me que esta minha mania de fazer as coisas de uma forma pouco convencional ainda vai causar muitas chatices a ver pela amostra de hoje à saída da igreja.

De uma forma natural cada um partiu para sua casa. Combinámos encontrarmo-nos por volta das duas da tarde ali no Point. Uma parte do meu trajecto foi partilhado pela Vanessa e pela Clarissa. Elas iam juntas, entreolhavam-se e portavam o riso sempre que o Mike dizia:

- Este Luís, este Luís.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

67 – A ver passar pessoas importantes

Ficámos ali um pouco a observar as pessoas a passar. Algumas nem tinham assento no Conselho, iam por curiosidade. Nós estávamos quase, quase a ir também quando o pai da Joana passou. Parou e cumprimentou-nos com simpatia. Ele também não sabia o motivo da convocatória tão urgente.

- Mas das duas uma: ou é por causa aí da vossa amiga – apontou para a Clarissa com um sorriso – ou é por causa desta onda de graffiti que tem assolado a cidade.

Todos concordámos. A Clarissa parecia envergonhada. Eu tentei não parecer. Afinal dois deles foram meus.

O Dr. Filipe Capuchinho foi embora com a recomendação de todos irmos para casa almoçar e chegou o meu pai. Cumprimentou-nos e mandou-me para casa. Encolhi os ombros para o Espinhos, tinha que ir. A Joana compreendia-me. Ao menos isso. E se ela for a autora dos poemas, mais me compreenderia... ou eu a ela.

Não tivemos tempo para ir embora pois do Workers Licor and Food saiu um pequeno grupo de personalidades da cidade encabeçadas pelo Dr. Capuchinho, sénior. Nós encostámo-nos à loja do meu pai para os deixar passar. O venerável saudou a neta com um beijo na testa e com um leve menear da cabeça à Clarissa. Os outros ignoraram-nos prestando toda a sua atenção à presumível neta do fundador da cidade. Encaminharam-se para a Câmara com pompa e circunstância. Pelo menos aos meus olhos.

Se pensámos que tinham terminado os cortejos reais, muito bem enganados estávamos. Faltava o cortejo principal. Do Fiona’s Boutique saiu a poderosa Natércia Brigadeiro seguida pela sua corte. Não digo coorte por respeito à Vanessa cuja mãe a integrava e ocupava um lugar de alguma proximidade à líder. Seguia logo atrás da Bella. Uma parte do grupo era casada com uma parte do grupo do doutor Capuchinho. Certamente irão encontrar-se ali à frente e confraternizar por bastante tempo, pois nem uns nem outros entrarão no Conselho.

O cortejo passou por nós, felizmente do outro lado da rua. Todas as cabeças subalternas viraram-se para nos mirar. Para nos mirar é favor, para observarem a Clarissa, isso sim. Atenção que eu disse cabeças subalternas, pois a tia Natércia e a falsa loura Bella nem de lado nos viram, tão focadas no ponto de fuga do horizonte estavam. A dona Clotilde ao ver a filha acenou-lhe convidando-a a acompanhá-la. A Vanessa virou-lhe costas e perguntou-nos:

- Quem é a alma caridosa que me convida para almoçar? Se ela vai ali, o meu pai ou já está lá em cima ou vem a correr. Não deve haver almoço em casa e não me apetece cozinhar só para mim...

Como o Mike era quem estava mais perto dela, disse:

- Estás convidada. Se lá em casa não houver comida suficiente, na do Beto há. – Às vezes o Mike tem umas saídas de cavalheirismo troglodita. – É pena estarmos já em cima do almoço, se não íamos para a tua casa e vocês meninas faziam-nos um banquete. - Por favor, Mike, cala-te!

Nem vale a pena descrever a reacção da parte feminina do grupo.

terça-feira, 3 de maio de 2011

66 – O estômago terá que esperar?

O Hide Park estava húmido e triste. O Verão de São Martinho já passara. Neste ano viera na altura certa. Passear pelo parque enchia-me de melancolia e de fome. Sim, fome. Ok, uma fome misturada com gula. Este tempo, neste local, invoca-me os petiscos gulosos da minha mãe. Chocolate quente à lareira lá de casa. Um belo bolo de laranja com nozes por cima. Uma tarte de maçã com uns poucos fios de ovos. Pudim de baunilha cremoso e pouco consistente. Castanhas cozidas, que depois de descascadas passavam por mel. Hum... um cheirinho de Porto na noite de Thanks Giving, que se aproxima. Lá em casa em vez do peru monumental que se vêem nos filmes a minha mãe costuma fazer uma bela caldeirada de marisco. Nas vésperas os meus pais deslocam-se a Setúbal para comprarem os ingredientes. Por cá na cidade a moda do peru é corrente.

Deambulámos pelo Hide talvez uma hora. O meio-dia aproximava-se e resolvemos dirigir os nossos passos para casa. Quase a chegar ao Point começámos a planear a tarde. A Clarissa tinha curiosidade em passar algum tempo no Young’s. Todos torcíamos o nariz à ideia, mas por ela talvez condescendêssemos.

Enquanto atravessávamos o cruzamento e discutíamos os prós e os contras, notámos uma certa agitação na Main, principalmente para os lados da Câmara. Da New England e de todos os lados víamos pessoas e carros dirigindo-se para lá. Por nós passou o senhor Peninha, vinha com cara de poucos amigos.

- Bom dia, senhor Peninha, - disse eu – passa-se alguma coisa?

- Deve passar-se, Alberto, para nos chamarem ao Conselho Municipal tão perto do almoço. Será que não podiam deixar passar a hora da refeição?

Ele caminhava visivelmente irritado.

- Terá sido por causa do que escreveram na parede da câmara, hoje cedo? – Perguntou a Joana.

O meu coração deu um baque. A lata de tinta para frigoríficos pesava-me no bolso. Com o passeio já me esquecera dela. Senti a cara a escaldar. Terá alguém reparado?

- Não sei, menina. A minha Maria contou-me. Não me acredito que alguém na Câmara esteja a roubar-nos, mas se estiverem... estão tramados, ai estão.

O senhor Peninha é conhecido pela sua frontalidade e veemência nos seus argumentos. Também por apreciar um bom manjar degustado com calma. Hoje se não tiverem cuidado o senhor Peninha fará jus à sua fama.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

65 – Há nevoeiros estranhos

O Luís e o Mike juntaram-se-nos perto do Liceu. Ficaram admirados por me verem e eu igualmente por os ver, sobretudo o Mike.

- Então, Mike, nenhuma cheerleader para aquecer ontem, ehn?

O contrário do que é habitual ele pareceu-me um pouco embaraçado. Respondeu-me sumidamente com um monossilábico não. Espantado fiquei.

Mais ainda ao notar no ar um clima estranho que não conseguiu identificar. Subitamente ninguém tinha nada para dizer. As raparigas tinham se comportado até à chegada deles como sempre, bastante faladoras e expansivas. Agora tinha tudo mudado. Até parecia que não nos conhecíamos. Estranho.

Sem saber o que fazer nem como quebrar o gelo olhei para a Joana como que pedindo instruções. Ela parecia misteriosamente divertida e mal reparou no meu olhar. Estávamos ali em silêncio, olhando para o Liceu ou para o céu ou para a Main ou para outro lado.

Por fim lembrei-me:

- Vamos ao Hide. – O parque sempre fora o meu refúgio. ~

Todos acolheram a ideia com entusiasmo. Tinha salvo o dia, julgando pela reacção de todos. As raparigas ladearam a Clarissa (para desconsolo do Luís, reparei eu) e explicaram tudo sobre o nosso parque público preferido (e único, a bem da verdade). A Joana contou como o nosso grupo foi formado para mostrar a importância daquele local para todos.

Quando parámos na ponte sobre o Fiona para apreciar a paisagem, o nevoeiro recuara até aos montes que nos protegem e separam do rio Sado. Tanto a norte como a sul, perto das respectivas barragens, ainda se viam bancos de neblina. E o nevoeiro que se instalara no nosso grupo?

terça-feira, 26 de abril de 2011

64 – Passeio dominical adornado por mais uma teoria

As raparigas queriam mostrar a cidade à Clarissa. Descobri isto pela conversa das três. Pelos vistos tinham combinado um passeio na noite anterior, depois de eu ter saído.

Ainda havia algum nevoeiro, o que embelezou a margem leste do Fiona. Fomos até à beira rio em frente da Câmara. Estava fresco, mas era realmente um belo espectáculo ver o recuo do nevoeiro pelas águas até à margem. A princípio só distinguíamos ténues sombras, mas à medida que o vento Oeste o empurrava a massa de vapor desagregava-se. Certo sítios viam-se melhor que outros. Mais a baixo chegou-se a ver um braço da nuvem ainda na cidade que ficou cortado por uma súbita viragem da direcção do vento.

Ao contrário do que tenho observado, desta vez depois do nevoeiro não veio o céu azul. Por cima da neblina densa descobriu-se uma larga camada de nuvens cinzentas. Nada de sol nem de azul do céu. Olhando para a atmosfera não me admiraria que chovesse ao longo do dia. A meio da manhã começaram a aparecer nuvens mais baixas que passavam rapidamente vindas do mar.

Depois da beira rio, descemos a Main até ao Liceu Geral. Fomos fazendo uma apresentação detalhada dos estabelecimentos por onde passávamos e das pessoas que neles trabalhavam. Chegados ao Liceu a Clarissa perguntou:

- Porquê que o Liceu tem o nome em português? Tudo o que tenho visto aqui faz referência ao meu avô ou à América.

Era bem vista a pergunta. Realmente tinha o nome pomposo de Liceu Geral Silveirense. Poderia ter tido o nome de Silveira’s High School ou outra coisa do género.

Não sabíamos. Eu congeminei no momento uma teoria. Talvez fosse para dar a ideia de que apesar de todas as evocações americanas nós vivíamos em Portugal. As gerações formadas naquela escola deviam estar preparadas com uma forte cultura portuguesa para o caso de irem viver para longe a cidade (o que segundo outra teoria minha isso não é possível).

Seja como for a nossa única escola tem um nome português.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

63 – Uma teoria cá minha

Então não é que aquelas alminhas, silveirenses claro, leram a minha mensagem na parede como uma contestação à política financeira do Mayor? Tanto agente da autoridade junto chamou a atenção para o sucedido. Como o escrito foi logo apagado, a história sobreviveu na boca das testemunhas. E depois passou de boca em boca. Todo cidadão que nunca duvidara das finanças silveirenses começou a pensar duas vezes.

Não sei se alguém teorizou sobre o assunto, mas é assim: pega-se num universo limitado de indivíduos, fornece-se uma dada informação descontextualizada e a mentira passa a verdade. Mais, o que não existia, passa a existir. Porquê? Porque se até ao momento essa informação não fora vinculada, é porque não existira, passando a existir por alguma razão isso acontecera. E essa razão deve passar, é provável ou possível, que passe, por haver a necessidade de ser revelada. Ou seja, aparece porque a verdade vem sempre ao de cima. No presente caso, quem se daria ao trabalho de arriscar-se à prisão para dizer uma mentira? Os boatos surgem em conversas causais, as insinuações falsas são quase subliminares. Escrever uma mentira numa parede seria menos eficaz do que passá-la da boca para o ouvido. Escrever numa parede dá trabalho, eu que o diga, por isso é valorizado. Se pintam na parede uma insinuação de que algo se passa nas finanças da cidade, então é porque algo se passa mesmo.

E assim se vê como um miúdo apaixonado gera a confusão numa cidade. Em vez de chegar ao pé da Joana e declarar-me, resolvi inovar. Aí está o resultado. O boato sobre a má gerência do Mayor alastrou-se pela Silveira como fogo nas silvas.

terça-feira, 19 de abril de 2011

62 – Mas... mas... o que aconteceu?

Na parede do hospital estavam escritas as seguintes palavras: OLHA O TEU BOLSO. Ok, sou um gajo meio complicado. Porquê dar-me a este trabalho todo? Porque sim. Não posso?

Eu gosto muito da Joana, quis fazer algo em grande, algo para a pôr a pensar. Se for a autora desconhecida dos poemas, sabe que estou interessado. Se não, vai ficar no mínimo curiosa. No bolso dela coloquei mais um poema.

Ainda tive a esperança de ela ir ver os seus bolsos naquele momento, mas por azar passou por nós a esposa do Sr. Peninha a dizer para a irmã:

- Já viste isto, mana, agora andam com políticas na cidade. Está tudo de pernas para o ar.

Não ouvi o que a mana respondeu, nem percebi à primeira o que a outra dissera. O que é que o meu graffiti tinha a ver com a política? O que é certo é que outros delegados estavam a chegar e o xerife directamente de casa, nada satisfeito por ter sido chamado tão cedo, nem vinha fardado.

- O que quer dizer aquilo? – Perguntou a Clarissa.

Eu preferi não emitir opinião. Encolhi os ombros e abanei a cabeça. O spray de tinta para electrodomésticos começava a pesar-me na consciência, não pelo que fizera, mas pelo receio de ser topado por quase todos polícias da cidade.

- Será que se passa alguma coisa nas finanças da cidade? – Perguntou a Vanessa à Joana.

- Eu não ouvi falar nada, mas lá em casa pouco se fala do governo da cidade.

- Não existe nenhuma obra grande para ser feita? – Perguntou a Clarissa olhando de novo para o meu graffiti, que depois de ter sido fotografado já estava a ser pintado.

- Não. Tirando a recuperação da casa do teu avô. – Disse a Vanessa. – O que achas, Beto?

Lá tive que encolher os ombros, abrir e fechar a boca simbolizando não ter palavras. Estava mesmo sem elas. O que raio acontecera? Era suposto a Joana ir ao bolso da gabardina e encontrar o meu poema.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

61 – É agora!

Concluíra o meu plano. Nada dependia mais de mim. Talvez por isso vivi a celebração mais intensamente. Consegui manter o meu pensamento afastado do que fizera e das consequências, ainda era cedo para surgirem. Os cântico tocaram-me de maneira especial pela sua beleza. Os tempos do ritual, estar de pé, sentar, os silêncios, as leituras. Havia lugar para mim, também. Havia lugar para todos, percebi.

Desta vez a Joana não subiu ao... sei que tem um nome próprio, mas não me lembro... chamo-lhe microfone. Ela desta vez não participou nas leituras. Pelos vistos vão rodando. A Vanessa e a Clarissa estavam perto, dois banco atrás. Esta, das duas, parecia mais familiarizada com o ambiente de uma missa. E não mostrou qualquer embaraço por se mostrar. O povo silveirense é bastante ordeiro e obediente, sendo o católico talvez ainda mais. Certamente miraram a forasteiras, eu é que não dei por nada. Terá sido por estar a viver a celebração tão intensamente?

No final, esperei por elas. Cumprimentei a duas e soube de como me viram absorto no início. Deixámos sair a maioria das pessoas, a Joana demorou-se um pouco. Estávamos dentro da Igreja, perto da porta. Espreitei para fora com a pulsação a acelerar. O nevoeiro estava a desaparecer. Meu Deus, estava quase!

Estrategicamente deixei as raparigas passar. Vimos algumas pessoas ainda por ali. Estavam a apontar para o hospital, que ficava em frente. Era agora. Estava bem visível o que eu viera fazer na altura em que a Joana foi à sacristia. E como seria de esperar já lá estava um delgado a olhar feito parvo.

terça-feira, 12 de abril de 2011

60 – Ponto de não retorno

Por mais estranho que parecesse, o meu plano dependia de como a Joana viesse vestida. Foi por isso que saí de casa tão cedo. Queria vê-la chegar para ter tempo de pensar no que fazer a seguir.

Esperei oculto, mas suficientemente perto com o objectivo de entrar pouco depois dela. Graças a Deus estava nevoeiro. Este plano tinha muitas variáveis. Depois de entrar na igreja tive que enfrentar outra.

A Joana foi para a parte da frente. Ainda havia pouca gente, essa variável estava a meu favor. Tinha que agir e agi. Ela depois de chegar ao seu lugar habitual pousou a mala e iniciou o despir da gabardina. Era minha deixa. Apressei-me a tirar o meu casaco e quase que corri para ela. Com a minha aparição a seu lado, a gabardina ficou a meio caminho. Falei baixinho.

- Olá, Joana. Está bem?

Ela pareceu surpreendida, mas rapidamente sorriu.

- Olá, Beto, sempre vieste. Que bom.

- Deixa que te ajudo. – Peguei na gabardina dela e ajudei-a a despi-la. Dobrei-a e com o meu braço direito oculto pelo meu casaco consegui encontrar um bolso dela. Deixei lá dentro um pedaço de papel. Ponto de quase não retorno. – Eu vou lá para trás, sinto-me melhor, só vim dizer-te olá. Até já.

A surpresa voltou ao seu rosto enquanto eu lhe dava a gabardina. No meu rosto dois incêndios abrasavam cada lado. Até a testa ardia. Fui para última fila. Ajoelhei-me e pedi a Deus para acalmar-me. Fiquei lá algum tempo. Faltava fazer o resto. Chegar ao ponto de não retorno e enfrentar mais umas quantas variáveis. A calma foi chegando. A adrenalina voltou a jorrar. Mesmo que não conseguisse fazer o resto, o mais importante já estava feito, os dados estavam lançados.

Depois da oração de joelhos a Joana levantou-se e foi à sacristia. Era a hora. Saí calmamente do meu lugar e da igreja. O nevoeiro era meu amigo. Não vinha ninguém a entrar, por isso ninguém deve ter-me visto sair. Corri para a estrada. Tirei o objecto do bolso e fiz o que tinha planeado. Um minuto depois, ok talvez dois, estava de volta ao meu lugar. A Joana continuava lá dentro. Pouco depois da minha chegada entraram mais pessoas. Cumprira o meu plano sem imprevistos, mas com muitos nervos e tensão. Atingira o ponto de não retorno.

Depois da tempestade veio a calma. Pacificado entreguei todo o sucesso deste empreendimento a Deus. Já não tinha nada para lhe pedir, só Lhe agradecia a oportunidade e dei por mim a dirigir-Lhe o mesmo carinho que sentia pela Joana.

Vogando nestes pensamentos e sentimentos só quando a Joana regressou da sacristia é que reparei na presença da Vanessa e da Clarissa. À saída fiquei a saber que elas deviam ter chegado pouco depois de eu ter ido dar um saltinho à rua. Não me falaram por não quererem interromper a minha oração, eu devia estar mesmo absorto. Estavam surpreendidas e eu também.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

59 – As inconstâncias da alma

Como seria de esperar dormi mal de noite, se é que cheguei a dormir. O plano desfilava na minha cabeça acordado e a sonhar. Dormi, mas não descansei. Muita tensão, muita ansiedade. Assim que saí à rua, pareceu-me ter nascido de novo. Uma leveza, uma calma, a certeza de que tudo ia correr bem. Porquê? Mal se via um palmo à frente do nariz por causa do nevoeiro.

Coloquei o capuz não fosse a minha alegria irradiar luz. No bolso interno do casaco leva o que precisava e mergulhei na bruma. Se fosse há duas semanas, teria dito que os deuses estavam do meu lado, mas eu dirigia-me à igreja. Deus e santo António, padroeiro da igreja, estavam do meu lado. Pelo caminho fui agradecendo ora a um ora ao outro, mas no fim acabei por centrar-me em Deus, afinal tudo depende dele, não é?

Algures lá no fundo da minha consciência havia o desconforto de estar a servir-me da ida à igreja para os meus próprios interesses. Eu abafava esta voz dizendo mais alto que antes do plano já tinha decidido ir à igreja no domingo. A voz respondia-me com o nome da Joana, se não fosse por ela, não ia. Normalmente após este argumento eu calava-me por algum tempo até dizer que era por amor. A voz, por vezes podia ser muito cínica, dizia que eu não conhecia o amor, aquilo era um capricho, uma necessidade de afirmação perante o Mike e o Luís.

Quem te viu, quem te vê, Beto. Há cinco minutos irradiavas luz, agora entras numa espiral de conflito interior. Parei. Respirei fundo. O ar húmido fez-me bem. Manter o plano. Manter o plano era o melhor. Haver nevoeiro era bom sinal. Era sinal que Deus estava do meu lado. Calei assim a voz incómoda e retomei a caminhada.

terça-feira, 5 de abril de 2011

58 – E a adrenalina começa a jorrar

Tive muitas horas para pensar exactamente como iria fazer as coisas. Também para ganhar coragem... e muita. O que me propunha fazer poderia ser a coisa mais genial ou mais estúpida do universo. Tudo dependesse de como sairia da situação.

Foi sentado no alpendre do Dr. Capuchinho que tive a ideia, mas levei as horas seguintes da noite e madrugada para conceber o plano. Aquele domingo iria começar de forma diferente para a Joana e para mim. Já o anterior foi invulgar começando com a minha cabeça a bater na mesa de cabeceira.

O meu plano teve variáveis que potencialmente expõem e denunciam-me, mas não consegui melhor. Lamento. Uma delas foi o facto de ter ido buscar à loja do meu pai um determinado objecto. Se ele descobrir que desapareceu vai pensar logo em mim, afinal tenho alguma facilidade de acesso.

Tanta facilidade tive que depois da tarde no alpendre, mal entrei em casa e vendo que ninguém me ouvira chegar fui pegar a chave das traseiras da Grand Groceries e escapuli-me. Felizmente chovia. Em quinze minutos fui e vim. Outra variável era a minha possível visibilidade nesse tempo. Alguém pode ter-me visto.

Com calma elaborei o plano. O que fizera até então era só o alicerce único e fundamental para seguir em frente ou não. Até perto do momento em que o plano estiver concluído, posso sempre desistir. O ponto de não retorno implica duas acções de preferência simultâneas. De preferência, mas impossíveis de concretizar ao mesmo tempo, afinal sou só um.

Isso levanta outra questão: porquê sozinho? Porque não abrir o jogo ao Mike e contar com a sua ajuda? A bem da verdade não sei. Somos amigos, é certo, mas isto com a Joana vai para além, muito, das nossas histórias amorosas com as raparigas e amigas delas que costumávamos... assim como que... partilhar. É feio dizer, mas acho no fundo, bem lá no fundo, que temo um possível interesse do Mike pela minha Joana no caso de ela não estar tão interessada em mim como eu nela. Espera-me um processo, longo ou não, de conquista, de sedução. Ele é o meu melhor amigo, mas tenho medo da sua interferência. Para já vou arriscar sozinho.

Gela-se-me o sangue, arrepia-se-me a pele, mas meu Deus como me sinto vivo!

sexta-feira, 1 de abril de 2011

57 – O que os factores exteriores provocam

Talvez por causa da tristeza da Vanessa, talvez por causa do comunicado, acabámos por não ir passear. É certo que ter começado a chover ajudou.

Foi uma tarde muito bem passada na casa do Dr. Capuchinho, que para variar não estava, mais tarde soube-se que nem na cidade. Nas traseiras havia um alpendre com dois bancos de baloiço suspensos. Foi muito agradável. A chuva caía no quintal ajardinado, ouvia-se o seu suave murmúrio por cima de nós como uma banda sonora. Sentíamos a actividade doméstica no interior. Mãe e filha, Maria e Cristina, preparavam-nos um belo lanche. Havia no ar um doce aroma a bolo de canela como à vezes acontece lá em casa.

Ocupámos os dois bancos: raparigas para um e rapazes no outro. Eu, que de parvo por vezes sou apelidado, estúpido não sou. Escolhi ficar na ponta mais afastada das raparigas a fim de poder estar sempre virado para elas. Qualquer um que falasse, rapaz ou rapariga, eu estaria de frente para ele ou ela. Objectivo? Poder contemplar a minha Joana. Para minha sorte ela estava logo na frente das outras, quase nada a tapava no meu campo de visão.

A Vanessa ficou no meio, murcha apesar do aconchego das outras raparigas. E de nós, mas já se vê, somos rapazes, há certas distâncias. Para mais que somos amigos há muito tempo.

Até à altura do lanche falámos pouco. A chuva caía. Os bancos oscilavam. Cada um viajava nos seus pensamentos. Olhares trocavam-se. Percebi a ligação nascente entre o Luís e a Clarissa. Dei por mim a pensar que só faltava o Mike e a Vanessa...

A chuva trouxera um agradável frescor. Sabia bem estarmos ali, juntos, a vê-la cair ou somente a senti-la como eu. Mudei o assunto dos meus pensamentos ao cruzar o meu olhar com o da minha... Joana. Lembrei-me da madrugada de há dois dias. Aquela música renasceu dentro de mim, épica, misteriosa, suave, telúrica. Ah, como o amor e uma tarde de chuva sob um alpendre fazem desencantar em nós palavras pouco habituais: telúrica!

terça-feira, 29 de março de 2011

56 – A decisão da Vanessa

A pergunta ficou por responder. Quem quer que tenha escrito este novo poema era alguém que não conseguira aproximar-se de quem gostava. Até chegarmos à caso do Dr. Capuchinho tentei lembrar-me de como me relacionava com a Joana. Nós éramos próximos. Que mais queria ela? Que pergunta parva, o mesmo que eu: ser correspondido. Para isso devia declarar-me. Ui, problemas à vista. E se não for ela quem escreve os poemas?

Tive que deixar este raciocínio para depois. Chegámos. A dona Maria abriu-nos a porta com simpatia. O resto do pessoal já estava lá. Senti um calor na cara ao olhar para a Joana e pior, sentir o olhar dela em mim. Onde está um buraco quando uma pessoa precisa dele?

Embaraçado ou não, corado ou não, lá cumpri as obrigações sociais de aperto de mão ao Luís e beijos à raparigas. Terei alucinado ou houve uma descarga de electricidade quando a pele do meu rosto tocou na dela?

O Mike devia estar com vontade de contar o nosso desentendimento no cruzamento, mas o Luís quis saber como os nossos pais tinham reagido. Desvalorizámos os sermões. O mesmo acontecera com os resto do pessoal, excepto com a Vanessa que ficara sem mesada e sem renovação do guarda-roupa nos próximos tempos.

- Não faz mal, assim que eu entrar na universidade nunca mais ponho os pés nesta cidade. – Encolheu os ombros e sentou-se como se não afectasse cortar definitivamente com a família.

- E como vais pagar os estudos? – Perguntou o Mike.

- Se eles descobrirem que não quero voltar, arranjo um emprego e estudo de noite.

Olhou-o de frente durante algum tempo como que desafiando-o ou aos pais através dele, mas acabou por esconder o olhar que ficara raso de lágrimas. A Joana sentou-se ao seu lado, passando o braço por cima do seu ombro. O Mike sentou-se no outro lado e pegou-lhe na mão.

- Vá lá, não fiques assim. Estes castigos não duram muito. Eu já tive muitos e tudo passou.

Levou a mão livre à cara e começou a soluçar. A Joana falou:

- Não deves comparar as coisas. A Vanessa tem uma vida familiar diferente da nossa. Infelizmente não há muita harmonia, não é minha amiga? – Beijou-a na cabeça. A Vanessa acabou por encostar-se à Joana e esconder a cara no abraço desta. – Vá deita cá para fora, depois vais sentir-te melhor.

A Clarissa guardou uns papéis, que tinha nas mãos quando chegámos, no bolso das calças e acocorou-se em frente da Vanessa dando-lhe o conforto possível. Eu e o Luís ficámos de pé sem saber o que fazer.

O meu olhar estava na minha Joana. Ó como é bela! Como tem um coração maravilhoso! Naquele momento percebi não me interessar se ela era a autora dos poemas ou não. Se for, melhor, mas gosto dela por quem é, já não por causa do que imagino através daqueles escritos.

sexta-feira, 25 de março de 2011

55 – No cruzamento

Os meus pais ainda quiseram proibir-me de chegar perto da Clarissa, mas como em tantas outras coisas as decisões familiares passavam pelo aconselhamento com família do Mike. Neste caso, felizmente para mim, o Mike só foi sujeito a uma grande reprimenda. Depois do almoço já tudo tinha passado e nós os dois caminhávamos calmamente em direcção da Teotónio da Silva Street.

Ao passarmos pelo cruzamento voltei a minha atenção para o assunto do poema. Parei e reli-o. Era ali que a Joana queria que o lesse. Nem ouvi o Mike a perguntar-me porquê que parara. O que ela queria dizer? Não parecia seu, pelo menos não fazia lógica que fosse dela depois da minha resposta.

- Ó, Mike, quem é que tu achas que escreveu isto?

- Fui eu claro. Quem havia de ser?

- Escreveste o poema? Tu?

- Quem havia de ser?

Olhei para ele de frente em estado de choque. Ele falava com naturalidade. Algo estava a escapar-me.

- Tu escreveste como se fosses uma rapariga?

- O quê?

- O quê o quê?

- Mau. Beto estás maluco?

- Ahn?

- De quê que estamos a falar? – Tinha as mãos na cintura.

- Do poema?

- Sim.

- Estás a dizer que escreveste este poema?

- Yeah, não reconheces a minha letra? Beto, meu, estás maluco?

Olhei para o papel e percebi.

- Ó, minha grande besta! Eu estava a perguntar sobre quem tinha escrito o poema no chão. Estás parvo ou a gozar comigo? – A minha voz deve ter sido ouvida nas ruas até bem longe. Depois só se ouviram as gargalhadas do Mike. As minhas levaram algum tempo a fazerem-se ouvir.

terça-feira, 22 de março de 2011

54 – Como recordar o passado explica o presente

A chegada e leitura do comunicado reacendeu nos meus pais o episódio que eu julgava já passado. Quando cheguei a casa vindo da rádio, na noite passada, eles estavam à minha espera. Ouvi um sermão que esteve perto de chegar ao maior de sempre, tinha eu quase treze anos.

Nessa altura tive um ataque de ciúmes das minhas irmãs e fugi de casa. A Isabel gozava comigo e a Beatriz fazia queixinhas de mim por tudo e por nada. Nessa altura elas estavam aliadas e eu não suportei. Num dia de muita chuva passei-me da marmita, destruí tudo o que estava em cima da mesa. Era hora de almoço e a mãe delegara na Isabel essa refeição por ter ido ao médico fora da cidade. Não aguentei as brincadeiras e com as hormonas aos saltos parti os pratos, destruí o almoço, corri para a rua no meio do temporal. Andei desnorteado. Fui parar ao rio. Ainda furioso atirei o casaco para a água e refugiei-me no Hide Park, no coreto.

Entretanto, a mãe do Mike veio ver como nós estávamos. A minha mãe ainda não confiava completamente na adolescente filha mais velha e por isso pedira-lhe ir dando uma olhada. A Isabel não conseguiu esconder por muito tempo o que se passara. A vizinha veio à nossa casa para saber de mim, pois na barragem sul tinham apanhado o meu casaco.

O resto dá para imaginar. Todos pensaram que eu tinha caído ao rio ou saltado. As barragens pararam. A cidade mobilizou-se nas buscas. O Fiona foi esquadrinhado de lés-a-lés até ao início da noite. A minha mãe ia morrendo de desgosto quando chegou a casa. E o meu pai amaldiçoou a hora em que não dera ouvidos à esposa para vir tomar conta da casa em vez de ficar na loja.

Já era de noite quando o belo do Beto chegou a casa. Esperei que a chuva abrandasse, como não havia maneira de isso acontecer tive que meter-me nela. Cheguei a casa sem um poro sequer seco. Estava pior que um pinto. Encontrei um montão de gente à porta, fugi para entrar pelas traseiras. Encontrei a minha família na sala em pranto. A minha mãe agarrada ao casaco no sofá, com as minhas irmãs a chorar abraçadas às suas pernas. O meu pai de pé, apoiado à janela com os braços esticados, cabisbaixo a não ouvir palavras de consolo do pai do Mike. A mulher dele estava a dizer às pessoas para deixarem a família com a sua dor.

A minha entrada teve um quê de cinematográfico. Eu vim das traseiras onde estava escuro. Houve um relâmpago que me revelou a escorrer água ao Mike e ao irmão mais novo, Manel, que julgou ver um fantasma. O miúdo deu um grito histérico num tom de tal maneira agudo, ao ponto de ainda o chamarmos quebra-vidros, que assustou toda a gente. O Mike foi o único a ficar contente desde o princípio e riu muito. Foi a alegria dele que me fez aguentar o que se seguiu. Meses e meses de castigo sem televisão, rádio, livros de quadradinhos, só escola e casa a estudar ou a ler.

Devem imaginar o sermão que foi. Pois este esteve perto. Pelo que soube nessa manhã o Mike teve dose parecida. Desta vez chegaram a ameaçar-me com a prisão. Só que... desta vez... entrou-me tudo por ouvido e saiu-me pelo outro. Eu sei que não fiz nada de muito grave... por isso dormi bem a noite.

sexta-feira, 18 de março de 2011

53 - Comunicado

Aquela manhã de sábado deve ter sido de bastante trabalho para as autoridades e distribuidores de correio. Para além do poema inoportuno, as autoridades resolveram emitir um comunicado urgente. Urgente mesmo, tão urgente ao ponto de todos os silveirenses o receberem por escrito a meio da manhã. Os distribuidores de correio, os delegados e o xerife entre as nove e as dez da manhã notificaram todos os cidadãos.

O comunicado chegou lá a casa depois de eu voltar do local do poema. O meu pai e o do Mike tiveram que assinar como receberam o envelope. Estava pedido para que reunissem a família e lessem em conjunto. Ninguém teria o direito de alegar desconhecimento.
Rezava assim:

Comunicado do Conselho Municipal Silveirense

Concidadãos, a nossa cidade está a atravessar um momento crucial da sua história. A presença da alegada herdeira do senhor Teotónio da Silva está a agitar a pacatez da nossa comunidade.

Este Conselho reafirma a sua determinação em repor a paz social o quanto antes. As diligências anunciadas anteriormente estão em marcha. Em breve teremos todos o dados para a obtenção da melhor solução para todos.

Silveirenses, a compreensível ansiedade generalizada, levou-nos, sociedade no global, a um dos pontos mais infelizes da nossa história na passada noite. Por mais compreensível que seja a situação, é inaceitável a forma como a liberdade de circulação das visitas, nossas hóspedes, foi violada.

Enquanto a questão da herança do senhor Teotónio não estiver resolvida, é obrigação de todo os silveirense a boa hospitalidade e reserva da privacidade, liberdade, de cidadania, movimentação e recato da alegada neta e respectiva acompanhante. Elas têm todo o direito de circular nas nossas ruas como qualquer um de nós, sem serem molestadas.

Esta resolução foi votada por unanimidade pela comissão permanente do Conselho em reunião extraordinária. A violação desta resolução está sujeita à lei por desordem e desacato à autoridade.

Pelo Conselho Municipal
Mayor Albano Brigadeiro

terça-feira, 15 de março de 2011

52 - Novo poema

Olhas para mim, mas nunca me vês
à distância estão nossos corações.
Não me verias mesmo que fosse três
ou por ti chamasse a plenos pulmões.

Sofro perdida de amores, que louca,
minha pele ferve quando me tocas,
anseio pelos beijos dessa tua boca,
aspiro cega o ar que tu deslocas.

Porquê que não reparas em mim?

Logo de manhã a cidade de Silveira acordou com mais um poema pintado, desta vez no asfalto da estrada. Mais concretamente no cruzamento da Teotónio da Silva Street com a Ford Street (homenagem à fábrica de automóveis onde o venerável Teotónio iniciou a sua ascensão à imortalidade corporizada nesta cidade). Perto deste cruzamento está a casa do senhor Peninha. Pela Ford passamos da Teotónio da Silva para a rua onde vivo, a Sado Street.

Quando vim da rádio não passei por ali e por isso não vi o poema escrito a tinta branca no meio do cruzamento. Assim que soube fui lá ver. Já estavam a lavar o chão. O xerife estava com cara de poucos amigos e todos os importantes da cidade, que por ali circulavam, faziam-lhe companhia no aspecto do rosto.

Quem me contara do poema foi o Mike. Ele vira-o na companhia do Luís ao regressarem da casa do Dr. Capuchinho. Deviam ser umas dez e meia, onze horas. Deram logo conta do atentado (expressão das autoridades), pois estava escrito de forma a ser lido por quem caminhasse em direcção do cruzamento. O Luís escreveu uma cópia do poema para nós lermos. Se não o fizesse o mais certo era não chegarmos a lê-lo.

No regresso de ter ido ver o chão a ser lavado fui pensando no que o poema significava. Se a Joana o escreveu, porquê ali? Ela viu-me sair da casa do avô, como é que queria que o lesse? Algo não batia certo.

- Beto, porquê que foste ver o cruzamento? – Disse o Mike sentado no alpendre onde eu o deixara. – Já leste o poema, querias confirmar se o copiámos bem?

- Não sei. Foi algo do género de ir ver um jogo ao campo em vez de o ver na televisão.

- Man, desde o último grafitti que estás estranho.

- E tu já nasceste estranho. O que achaste deste poema?

- É diferente dos outros. Talvez seja de outra pessoa. Há muita gaja carente por aí. Eu não dou para todas. – Ri-se e aponta para mim. – Tu tens que mostrar mais empenho.

- Yeah e o Luís também. – Às vezes dizemos coisas destas para despistar o interlocutor, eu só queria consolar a minha Joaninha.

- Nã, o Luís já está apanhado... – Havia uma certa amargura na sua voz.

- O Luís? Reatou com a namorada?

- Nã... Ele ficou apanhadinho pela priminha.

- Priminha? Qual?

- A tua.

- Minha?

- A Clarissa. Dah!? Está lento hoje.

- A Clarissa? Ele? – Sim, agora reparava, eles tinham estado juntos bastante tempo. – Estou a ver...

- Vê-se. Hoje estás mesmo... Eu bem que queria variar um pouco, às vezes as silveirenses cansam-me, mas o Luís não a largou nem um pouco. Tive que sair ao mesmo tempo que ele, porque o Capuchinho queria deitar-se.

- E ela? Achas que está na dele?

- Yeah. – Voz triste. – Parece que sim.

- Mike, o Luís tem o direito de arranjar alguém, não tem? E ela também não mostrou nenhum interesse especial em ti... por isso, para quê estares triste? Move foward, man.

- Yeah, there’s plenty of girls in the world. – Disse ele com sotaque à cowboy exagerando no a aberto do girls. Rimo-nos.

sexta-feira, 11 de março de 2011

51 – Veneno adocicado

Aquele momento também não iria ser altura para desfiar por histórias antigas. Da porta da frente vinham sons de vozes irritadas. Conseguimos saber o que se passava graças à entrada oportuna da Tia Bernarda. Ainda vi a Natércia a gritar com a dona Maria. Olha quem. Trazia a reboque a cheerleader Bella e uma indignada dona Clotilde da Silva, mãe da Vanessa.

- Quem é esta gente sem modos? – Perguntou a tia Bernarda como se ela tivesse um vestido de seda salpicado com lama.

- A mais fina-flor silveirense. – Disse a Vanessa afastando-se para o vão escuro de uma das janelas.

O Dr. Capuchinho saiu fechando a porta atrás de si. Ficámos em silêncio. A tia parecia querer dialogar, mas ninguém esteve para aí virado. A Joana juntou-se à Vanessa. Pouco depois o Mike, também, passou o braço por cima dos ombros dela. A Joana segurava-lhe nas mãos e falava-lhe baixinho.

A Clarissa ignorava por completo as tentativas da tia para ficar a par do que se passava. O Luís ficou perto dela e eu vagueei pela sala. Estava triste pela Vanessa. Apesar do que dissera há pouco, no fundo ela temia que a mãe e o pai fossem prejudicados. Mesmo sendo como eram, continuavam a ser pais dela. Apesar de tudo gostava deles, como seria de esperar.

O dono da casa regressou com o ar venerável de sempre.

- Já está resolvido aquele pequeno problema.

- Alguém pode explicar-me o que está a passar-se? – Disse a indignada tia Bernarda.

- Com certeza, cara senhora. - O cavalheirismo do Dr. Capuchinho era mais letal que um estilete enferrujado. – A fina-flor, ou parte dela, esteve ali à porta indagando sobre o bem-estar da sua sobrinha.

- E foi preciso tanto chinfrim?

- Sabe, cara senhora, a natureza humana é deveras complexa. Por vezes os anseios e receios são expressões emocionais de feitios pouco recatados. Uma alma apaixonada tende para a exuberância. Cara senhora, o seu experiente coração certamente saberá do que estou a falar.
E assim com mel nos lábios e nos gestos o Dr. destilava pequenas doses de cicuta. A Vanessa ainda abalada pediu licença e foi embora. A Joana levou-a à porta e regressou dando um olhar significativo ao avô. Este convidou-nos para jantar. Eu tive que declinar por causa do trabalho na rádio. Até já estava atrasado. Despedi-me de todos com imensa pena.

terça-feira, 8 de março de 2011

50 – Mike saves the day

No momento em que o Luís acabou de falar entrou na sala visivelmente irritado o Dr. Capuchinho.

- Mas que diabo aconteceu? – Disse quase gritando.

Todos encolhemo-nos nos sofás. Livra, que era intimidante!

- Avô – levantou-se a Joana mais depressa refeita do susto inicial com uma certa ternura na voz (que linda!) – a culpa foi minha. Quis mostrar a cidade à Clarissa e gerou-se uma enorme confusão. Desculpe.

- O que tinhas na cabeça? Levar a possível neta do Sr. Teotónio para onde todos a vissem? E depois afrontar a First Lady? A jovem Bella? Queres causar uma rebelião na cidade?

- Senhor, a culpa também é minha – Disse eu, não suportava ver a minha Joana acusada de tudo. – Na altura não vi o perigo da situação.

- E quem o nomeou responsável pelo acto da minha neta?

- Ninguém e não sou responsável, mas ela não agiu sozinha.

- E fui eu quem levou a Bella ao carro. – Levantou-se de súbito o Mike. – Levei-a e levaria de novo.

A Vanessa olhava para o Mike com admiração. Imitou-nos, mas foi a voz do Luís que se ouviu:

- Acho que posso falar por todos. Achámos boa ideia mostrar a cidade à Clarissa. Ela passou uma semana inteira aqui presa. Não leve a mal, a sua casa é excelente, mas mesmo numa gaiola de ouro a ave sente-se presa.

Todos estávamos de pé. A Clarissa aproximou-se do dono da casa.

- Senhor Capuchinho, peço desculpa pela confusão. Realmente estava curiosa em relação à cidade. Não pensei. – Olhou para o tapete, estava triste.

- Menina Clarissa, não precisa justificar-se. A minha neta e amigos é que deviam ter mais tacto e atrevo-me a dizer esperteza. Com franqueza, então não imaginavam uma reacção destas?
Eu disse mais para mim do que para o ar:

- Não temos vocação política...

- Pois não temos, mas houve uma falha na organização da cidade. – Disse o Mike para espanto geral. – Já vimos comunicados à população para tudo e mais alguma coisa e sobre este assunto nada.

O Mike é espantoso. Conseguiu assim de repente dar a volta à questão.

- Ai tem razão. – Disse o anfitrião que por fim sorriu. Nunca o tínhamos visto sorrir. A Joana descontraiu os ombros. Talvez tudo tivesse passado. – Ai a imprudência da juventude... Foi uma dessas, na vossa idade, que levou o Teotónio aos Estados Unidos. Vocês já contaram a história do senhor Teotónio da Silva à menina Clarissa?

Não, claro que não. Nem nos passou pela cabeça semelhante ideia. Tive vontade de perguntar ao venerável dono da casa onde andara nas noites passadas ao jantar para ainda não ter contado a história às forasteiras. Não perguntei, nem pergunto. Livra! Morria se tivesse outro olhar irritado dele. Livra!

sexta-feira, 4 de março de 2011

49 - Os receios de Clarissa

Como já era de noite foi fácil chegarmos à Teotónio da Silva Street sem que nos vissem. Enquanto riamo-nos conforme as nossas personalidades, a dona Maria avisava o meu pai e o Xerife da nossa localização. A Joana ofegante à chegada ainda tivera o auto-controlo suficiente para explicar a situação à governanta do avô.

Na sala o cenário era o seguinte: eu e o Mike num sofá a chorar a rir, à nossa frente a Joana e a Vanessa agarradas uma à outra, o Luís ria muito com a Clarissa contagiada pela gargalhada geral, mas algo receosa, no sofá que formava outra parte do quadrado. Sempre que ela tentava convocar a sua preocupação com a situação o nosso riso levava-a atrás.

Ao fim de algum tempo lá nos acalmámos. O Luís assegurava à Clarissa que a nossa fuga não iria ter consequências maiores. Ela levantou objecções, as autoridades tinham sido convocadas. O Luís, e nós com ele, disse que a autoridade pouco ou nada têm para fazer, que ser xerife ou delgado era a melhor profissão da cidade. Há quanto tempo eles não tinham uma alteração da ordem pública? Se bem me lembro, tirando a chegada das forasteiras no domingo passado, foi há quase dois anos quando dois irmãos na noite de Thankgivings abusaram da bebida e andaram pela cidade a cumprimentar toda a gente. Ao fim de algum tempo reagiram mal a alguns cumprimentos menos amistosos e gerou-se reboliço, que fez encher a prisão. Doze detenções, oito alcoolizados e quatro ligeiramente feridos.

O trabalho da nossa polícia é o pedagógico. Vão muito à escola ensinar-nos civismo e cidadania. Anda pelas ruas à noite para encaminhar alguém com um copinho a mais. Vigiam as nossas “fronteiras”. Mantém a ordem nas tarde e noites de animação no Hide Park e nos diversos acontecimentos desportivos, sobretudo ao ar livre.

O Luis explicou isto tudo à Clarissa, nós corroborámos e por vezes ríamos sobre um ou outro episódio. Ela estava preocupada com a reacção da Natércia. Pelo que nós tínhamos contado, ela parecia ser poderosa e não era conveniente para nós afrontá-la. Eu disse:

- Prima, os meus pais estão queimados para ela há bué. – Sim o calão português também chegou cá. – O meu pai largou a irmã dela pela minha mãe. Parece que foi um escândalo na altura. Por isso não há crise...

- Clarissa – disse a Joana – eu sou neta do único fundador vivo, como sabes, mas as relações entre o meu pai e o meu avô estão longe de serem amistosas. Com a tua vinda é que houve uma pequena aproximação, mas não nos iludamos.

- Eu – disse o Mike – sou um zé-ninguém para os poderosos da terra. O meu pai trabalha na barragem norte e a minha mãe em casa. Eu sou conhecido, mas os meus pais não. Por isso...

- Eu talvez tenha problemas – disse a Vanessa subitamente mais séria – a minha mãe tem a triste fixação de nos fazer ascender na escala social, mas não faz mal. Interesseira como é, verá que fiz muito bem aliar-me a ti.

- Obrigada pelo vosso apoio. Eu não quero que sejam prejudicados por minha causa.

Todos sorrimos. O Luís era o único menos sorridente. Olhava para ela com ternura. Percebi que a namorada de Sabugal do Sado passara definitivamente à história.

- E tu, Luís, - disse a Clarissa que talvez tenha reparado que o rapaz não dissera nada – vais ter problemas?

- Eu? – sorriu e pareceu crescer quando a encarou de frente – O meu pai é um poderoso produtor de arroz, talvez mais rico que todos os poderosos juntos da cidade. Se algum de nós ou das famílias for prejudicado, o meu pai terá todo o gosto em ajudar. Nós de todos os silveirenses, somo os menos americanizados.