terça-feira, 22 de março de 2011

54 – Como recordar o passado explica o presente

A chegada e leitura do comunicado reacendeu nos meus pais o episódio que eu julgava já passado. Quando cheguei a casa vindo da rádio, na noite passada, eles estavam à minha espera. Ouvi um sermão que esteve perto de chegar ao maior de sempre, tinha eu quase treze anos.

Nessa altura tive um ataque de ciúmes das minhas irmãs e fugi de casa. A Isabel gozava comigo e a Beatriz fazia queixinhas de mim por tudo e por nada. Nessa altura elas estavam aliadas e eu não suportei. Num dia de muita chuva passei-me da marmita, destruí tudo o que estava em cima da mesa. Era hora de almoço e a mãe delegara na Isabel essa refeição por ter ido ao médico fora da cidade. Não aguentei as brincadeiras e com as hormonas aos saltos parti os pratos, destruí o almoço, corri para a rua no meio do temporal. Andei desnorteado. Fui parar ao rio. Ainda furioso atirei o casaco para a água e refugiei-me no Hide Park, no coreto.

Entretanto, a mãe do Mike veio ver como nós estávamos. A minha mãe ainda não confiava completamente na adolescente filha mais velha e por isso pedira-lhe ir dando uma olhada. A Isabel não conseguiu esconder por muito tempo o que se passara. A vizinha veio à nossa casa para saber de mim, pois na barragem sul tinham apanhado o meu casaco.

O resto dá para imaginar. Todos pensaram que eu tinha caído ao rio ou saltado. As barragens pararam. A cidade mobilizou-se nas buscas. O Fiona foi esquadrinhado de lés-a-lés até ao início da noite. A minha mãe ia morrendo de desgosto quando chegou a casa. E o meu pai amaldiçoou a hora em que não dera ouvidos à esposa para vir tomar conta da casa em vez de ficar na loja.

Já era de noite quando o belo do Beto chegou a casa. Esperei que a chuva abrandasse, como não havia maneira de isso acontecer tive que meter-me nela. Cheguei a casa sem um poro sequer seco. Estava pior que um pinto. Encontrei um montão de gente à porta, fugi para entrar pelas traseiras. Encontrei a minha família na sala em pranto. A minha mãe agarrada ao casaco no sofá, com as minhas irmãs a chorar abraçadas às suas pernas. O meu pai de pé, apoiado à janela com os braços esticados, cabisbaixo a não ouvir palavras de consolo do pai do Mike. A mulher dele estava a dizer às pessoas para deixarem a família com a sua dor.

A minha entrada teve um quê de cinematográfico. Eu vim das traseiras onde estava escuro. Houve um relâmpago que me revelou a escorrer água ao Mike e ao irmão mais novo, Manel, que julgou ver um fantasma. O miúdo deu um grito histérico num tom de tal maneira agudo, ao ponto de ainda o chamarmos quebra-vidros, que assustou toda a gente. O Mike foi o único a ficar contente desde o princípio e riu muito. Foi a alegria dele que me fez aguentar o que se seguiu. Meses e meses de castigo sem televisão, rádio, livros de quadradinhos, só escola e casa a estudar ou a ler.

Devem imaginar o sermão que foi. Pois este esteve perto. Pelo que soube nessa manhã o Mike teve dose parecida. Desta vez chegaram a ameaçar-me com a prisão. Só que... desta vez... entrou-me tudo por ouvido e saiu-me pelo outro. Eu sei que não fiz nada de muito grave... por isso dormi bem a noite.

1 comentário:

  1. Coitado do Beto, quanta fúria contida. Também, com castigos de meses, bastante injustos, não admira...

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