sexta-feira, 15 de outubro de 2010

9 – O início de uma nova era

Então como é que nasceram os Espinhos? Nós os cinco estávamos na mesma turma e fomos obrigados a fazer um trabalho de grupo juntos. A professora de História quis misturar os alunos pertencentes às várias sensibilidades da nossa sociedade. Era tradição ninguém se misturar e haver grande competição. Chegou a haver espionagem e sabotagem de trabalhos de grupo. Desta vez o objectivo era evitar isso, mas era arriscar confusão.

Na nossa turma os neutros eram poucos, mas suficientes para no meu grupo ficar o Luís. Nos outros grupos ficaram dois “bem”, um neutro e dois aspirantes. Como faltava um “bem” e sobrava um indiferente, eu, o nosso grupo ficou com dois aspirantes e uma “bem”, a Joana. Coitada da Joana, se na realidade ela não fosse uma miúda muito diferente do estereótipo, não teria sobrevivido no grupo. Logo que nos juntámos, ela disse:

- Bem, vamos pôr mãos à obra?

- E quem é que te nomeou líder do grupo, para vires dar ordens? – Perguntou a Vanessa.

- Ninguém. Só queria evitar discussões sobre qualquer coisa fora do trabalho. Nós temos maneiras diferentes de ver as coisas, usemos isso para valorizar o nosso trabalho de grupo.

- Apoiado. – Disse o Luís e falando para mim começou logo a planear o trabalho.

Nós os dois debatemos e fixámos os vários pontos de interesse do assunto a desenvolver. Aos poucos os outros entraram no debate e o nosso grupo foi o mais harmonioso da sala. Casos houve que por respeito à professora não surgiram agressões físicas, mas no recreio houve porrada.

Encontrámo-nos várias vezes fora da escola, sempre no Young. Entre as amigas da Joana e os amigos do Mike e da Vanessa, havia uma certa estranheza ao ver-nos juntos a trabalhar.

O Young é um espaço com um longo balcão, que acompanhava a esquina para ambos os lados, e mesas para seis pessoas ao longo das montras. Os membros dos “bem” ficavam sempre na ponta mais longe da porta do lado da New England, os aspirantes obviamente na ponta do lado da Main. Nós estávamos ora de um lado ora do outro.

A formação consciente dos Espinhos Narcisos ocorreu quando num certo dia entra um casal no Young e vai para o lado dos “bem”. A rapariga, uma Marta de dezassete anos, vinha de mão dada com um tipo chamado Rui de dezoito anos. Ela era uma das principais dos “bem”, cheerleader, rainha de popularidade e filha de um ex-Mayor. O Rui era “um quadro médio” dos aspirantes, batedor de sucesso de basebol e filho de um dos líderes da oposição ao actual Mayor. A Joana ficou chocada ao vê-los pois este Rui tivera, até umas semanas atrás, um romance conturbado com a irmã mais velha dela, Maria Luísa. Este namoro nunca chegou a ser oficial e às claras porque as pressões eram muitas, sobretudo por parte do lado “bem”. Do lado dos aspirantes igualmente havia a noção de que não deviam haver ligações com os opressores. E o Rui era conhecido pelos seus ideais de esquerda e de irreverência. No fundo era mais um “bem” só que disfarçado. E ambicioso, manteve a Maria Luísa em banho-maria, nunca querendo assumir um compromisso até que teve a oportunidade de fisgar um partido melhor. A Maria Luísa sofreu muito com a situação e com o rompimento ainda mais. Sofreu ao ponto de ter saído de Silveira por largos tempos, oficialmente para estudar, mas, segundo mais tarde a Joana nos confidenciou, na realidade esteve numa clinica a recuperar de uma depressão.

Ao ver o casal a entrar a Joana ficou branca e depois vermelha e subitamente sussurrou-nos que queria sair dali imediatamente. A Vanessa que também estava furiosa pela traição ao grupo pelo Rui, disse:

- Mas temos o trabalho para fazer, hoje mal começámos. Temos que avançar um pouco.

- Aqui não fico mais nem um segundo! – Disse a Joana categoricamente.

- E o nosso trabalho? – Perguntou o Luís.

- Continuamos noutro sítio hoje ou noutro sítio noutra altura. – Respondeu ela levantando-se.

- Não podemos nos atrasar. – Disse a Vanessa – Que tal irmos então para a biblioteca?

- Na biblioteca não podemos falar à vontade. Eu conheço um sítio bom e hoje está um bom dia. – Disse eu e propus o Hide Park.

A ideia foi aceite por todos e num instante pusemo-nos lá. Quando já estávamos instalados, a Joana disse:

- Vocês sabem que eu sempre andei com pessoas que são chamados betos, betinhos...

- Antes de mais quero dizer que beto só há um, sou eu e mais nenhum. Eu sou o Beto. Convém que lhes chamemos de meninos e meninas bem, meninos da mamã, finórios, cor de burro quando foge, mas betos não. Ok?

- Está bem. Como estava a dizer eu pertenço a esse grupo, mas quero deixar de pertencer. Depois de ver o que aquele desavergonhado fez e pior ainda, o que os... finórios fizeram ao aceitá-lo de braços abertos, eu não tenho outra alternativa do que cortar com eles. É por isso que não quero voltar tão cedo ao Young.

- Eu estou de acordo contigo. – Disse a Vanessa. – O Rui traiu os amigos e companheiros.

- E pior, - começou o Mike – eu bem vi os amigos deles todos sorridentes como que aprovando.

- Eu acho bem, - disse o Luís - como neutro nesta contenda quanto maior união melhor.

- Pois acho tudo uma hipocrisia – disse eu – uns atacam os outros, mas somente com o intuito de os substituir. O Rui conseguiu passar para o lado dos finórios e estes acolheram-no de braços abertos. Uns dias antes quase que se matavam, agora por ambição são amigos. A mim cansam-me estas coisas. A política é-me indiferente.

Houve um silêncio. A Vanessa perguntou pela irmã da Joana. Não obteve resposta excepto as suas lágrimas. Nós adivinhávamos alguma coisa de grave, mas ela só mais tarde nos contaria. E quando o choro abrandou eu num arrebate emotivo declarei que nós os cinco devíamos formar o nosso próprio grupo e deixar de ser conduzidos pelos critérios instituídos da nossa sociedade. Assim nasceram os Espinhos Narcisos.

1 comentário:

  1. Uma boa razão para formar o grupo. Vamos ver onde essa independência em relação aos critérios instituídos pela sociedade vos leva...

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