terça-feira, 14 de dezembro de 2010

26 - Numa floresta de pensamentos me embrenhei e surpreendi-me

Eu bem que gostaria de ter estado dentro da Delegacia naquele momento. Eu e toda a cidade. Como é que toda aquela gente se acomodou nas sala pequenas da Delegacia e Prisão silveirenses? O tribunal reúne-se no Salão Nobre da Câmara, aí sim haveria espaço.

O tempo foi passando e a hora de almoço estava a bater à porta. Apesar da imensa curiosidade, as donas de casa tiveram que ir tratar do almoço. O número de homens e de jovens aumentou. O Luís ficou impaciente e partiu. A Vanessa continuava de mau humor e parecia trocar mensagens telepáticas com a Joana, pois olhavam-se de vez em quando. O Mike, um pouco aborrecido com a falta de novidades, tecia considerações sobre as poucas raparigas que por ali estavam, acabando por me contar pormenorizadamente as suas tentativas para aquecer a cheerleader. Fiquei com a impressão de duas coisas: que era o único verdadeiramente interessado no que se estava a passar; e que se passava algo que me escapava entre os Espinhos. Nunca me tinha sentido tão desunido em relação a eles como naquele momento. A Joana estava a se tornar num mistério. A bem da verdade a Vanessa também.

A espera começava a trazer ao de cima a minha noite sem dormir. Fui o primeiro a sentar-me no passeio, nem me importei se estava ao sol ou não. Os Espinhos fizeram o mesmo. O Mike não se calava com risadas baixas e comentários jocosos. Aos poucos o meu cérebro foi fechando as portas de entrada, excepto as necessárias para a vigília. Fui embrenhando-me em pensamentos como numa floresta que me levou ao poema escrito na parede da loja do meu pai.

Não precisava de olhar para lá, mas sentia-o. Estranhamente, ou não, sentia o desejo de tocar-lhe, contemplá-lo. Se não havia novidades das forasteiras, o meu interesse voltava-se para o poema. O cansaço impedia-me de fazer perguntas, mas sentia-me como alvo dele, que alguém escrevera-o pensando em mim, para eu ler, para eu pensa-lo.

Afinal o cérebro estava mesmo era a fechar todas as portas. Apoiei a cabeça nos braços e no joelhos. Os meus pensamentos começaram a ficar confusos e o corpo a ficar leve. Ia partir de viagem. Ouvi a minha voz interior a dizer: meu amor, meu amado, estou só, sozinha, ignota, se soubesses como sou devota, se soubesses como gosto de estar ao teu lado... Estaria eu de olhos abertos, ou já fechados? Ecoava no espaço “estar ao teu lado” “sou devota”. Ecoava. “Quem passa não sabe o quanto meu coração bate por ti. Alta vai a noite, corro antes que a festa acabe. Escrevo só para dizer: gostei de te ver ali”. coração. Coração. Devota. Estar ao meu lado.

Devo ter assustado os Espinhos. Abri os olhos e os braços como que para me segurar. Sentia-me a cair, precisava de me segurar. Acertei no Mike, que pareceu-me estar ainda a falar para mim, e na Joana. O Mike reagiu imediatamente empurrando-me e virei-me para o lado da Joana. Ela quase que caiu para trás e eu ia caindo-lhe em cima. Olhei-a nos olhos. E vi. Devota, ao meu lado, estou só, sozinha, ignota, gostei de te ver ali. Fiquei certo que a Joana era a autora dos poemas para mim.

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