sexta-feira, 27 de maio de 2011

73 – Às vezes tanta frontalidade e honestidade metem-me nojo

A minha alma estava parva. Como é possível alguém ter tanta bazófia? A Clarissa deve ter pensado o mesmo.

- A tia está a ser, no mínimo, um pouco indelicada com as pessoas que nos estão a dar hospedagem.

- Ora querida, é do interesse deles tratar-nos bem. Afinal somos os donos disto tudo.

- Somos? Onde é que a tia entra como herdeira?

- Ah, começo a reconhecê-la. Claro que a menina é a herdeira. Eu... eu somente sou a sua tutora.

- Nada lhe dá o direito de ser indelicada.

- Claro, que não, querida. Não era essa a minha intenção. Eu somente comentei a possibilidade de este problema ser em breve resolvido. Ao que pude ver os dirigentes desta... localidade, estão reunidos. Só pode significar uma coisa... estão a chegar à conclusão que a menina é a herdeira do dono destas propriedades. A única herdeira.

- E o que é que isso muda?

- Ora, querida, tudo. Não era a menina que sonhava ter uma quinta? Fazer agricultura biológica? Viver em contacto com a natureza? – A expressão da Clarissa carregou-se muito, já a tia parecia uma santa a falar. Nunca vi tão má representação. – Os meninos sabem? – Dirigiu-se para nós, ignorando a Vanessa que parecia muito perturbada. A Vanessa ora olhava para ela, ora para a tia. – Quando descobrimos a herança, nós as duas fizemos muitos planos. Tamanha fortuna devia ser aplicada em benefício de mais pessoas para além de nós. Nós somos pessoas simples. Muita gente, muitos pobres irão beneficiar desta herança. A Clarissa projectou a criação de um albergue para sem-abrigos. Não foi querida?

- Esses sem-abrigo, seremos nós? – Perguntou a Vanessa com lágrimas a despontar.

- Não ligues ao que a maluca da minha tia diz. – Aproximou-se da Vanessa, mas esta recuou para junto da janela, encostando-se ao reposteiro. – Nada está decidido. Nem...

- Já falas como dona de tudo. – A voz da Vanessa era sumida, ouviu-se algo como se fosse um guincho. Senti o Mike a dar um passo em frente.

- Mas claro que é a dona. – A tia devia estar a divertir-se. – Nem outra coisa nos passa pela cabeça. A Clarissa é neta legítima do Teotónio da Silva. Mas não fique perturbada querida... Vanessa... a Clarissa nunca falhou aos seus amigos. A menina certamente não ficará sem casa.

- Tia, pare com essa conversa!

- Clarissa, estou a começar a ficar aborrecida consigo. A menina tem que ser honesta com os seus amigos. Não lhes venda a ilusão de que tudo vai ficar na mesma, porque não é possível.

- A tia pare com essa conversa, está a distorcer tudo.

- Não estou nada. Eu só não quero que os seus amiguinhos estejam iludidos ou criem falsas esperanças. Eu sou muito frontal. A menina é dona destas propriedades. Propriedades onde eles e as suas famílias vivem ilegalmente. Tanto perante a menina, legitima proprietária, como perante as autoridades do país. E isso já a envolve a si directamente. Se as autoridades descobrem esta ocupação ilegal, é a dona das terras que será primeiramente responsabilizada. Eu acho que tendo a menina amizades aqui, devia avisá-los para os perigos e para a inevitável necessidade de eles procurarem habitação noutro lugar. A menina não se pode dar ao luxo de ter toda esta gente nas suas propriedades sem as formalidades legais necessárias. Esta situação está em violação de diversas leis. Antes de chegarmos cá já sabia disso. Já tínhamos falado nisso diversas vezes. A menina sempre foi defensora da legalidade.

- Tia, não distorça as coisas.

- Não estou a distorcer nada, querida. Temos que ser frontais e honestos. Esta cidade terá de ser demolida. A menina bem me tinha dito isso antes de chegarmos. Ter uma cidade totalmente ilegal nas suas propriedades vai contra todos os seus princípios.

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