terça-feira, 31 de maio de 2011

74 – O verdadeiro rosto

Eu não sabia o que pensar. Afinal porquê que estava a haver aquela discussão? O Mike olhava intensamente para a Vanessa que parecia acossada. A Clarissa parecia desorientada quando falou:

- A tia não sabe se a reunião na Câmara é sobre mim ou sobre os graffitis.

- Ora, minha querida. Vivemos em que mundo? Mesmo que este sítio seja... digamos... peculiar, mesmo assim o que é verdadeiramente importante, é tratado com a devida importância. Rabiscos numa parede são o que há mais.

- Não aqui. Nesta cidade isso é invulgar e se há uma insinuação sobre o Mayor, mais ainda.

- Querida, tenho quase a certeza que o motivo da reunião é sobre a menina.

- Mas como é que pode ter a certeza? – A Clarissa dava sinais de impaciência e desespero.

- Tenho razões para isso.

- E não vai dizê-las?

- Não nos precipitemos... – A tia encaminhou-se para a porta com um andar arrastado. Visivelmente estava a apreciar o momento.

O Mike desviou o olhar da Vanessa para a tia da Clarissa e perguntou:

- De onde lhe vem a certeza que de que a Clarissa é neta do Sr. Teotónio?

Ela olhou-o de alto a baixo, avaliando-o e com um ar displicente respondeu:

- O menino está a par dos documentos apresentados?

- Sim.

- E ainda tem dúvidas?

- Para mim tanto me faz. – Encolheu os ombros.

- Sabe minha querida – virou-se para a sobrinha – devia ter escolhido melhor as suas amizades. Nesta... nesta localidade só tenho visto gente alienada, como aí o rapaz, ou alucinada, como a mãe ai dessa menina. – Indicou com o queixo a Vanessa. Caminhou para a porta, abriu-a e voltou-se olhando para cada um de nós. – Já que a menina foi afectada pela falta de inteligência das pessoas desta coisa chamada Silveira, lembro-lhe que provavelmente a reunião foi marcada assim de repente porque chegaram os resultados da análise ao ADN da menina.

- Já?

- Querida, foi na segunda-feira passada. Estou certa que o Dr. Capuchinho deve ter mexido os seus cordelinhos para despachar a análise.

- Já fizeste a análise ao ADN? – A voz da Vanessa recuperara alguma da humanidade. – Porquê que não nos disseste?

- Ah, a menina não contou aos seus amiguinhos? – Mais uma expressão falsa da tia, que me meteu nojo.

A Clarissa não sabia o que dizer. Encarava ora a Vanessa ora cada um de nós. Estava verdadeiramente perdida, sem norte. Não sei o que sentir perante esta revelação. Será motivo de aborrecimento não nos ter contado que já tinha feito a análise? Para uns talvez fosse grave, para outros nem por isso. Afinal essa era uma das coisas faladas há oito dias.

A Clarissa passou as mãos pela cara, subindo à testa e alisando o cabelo até à nuca. Pôs as mãos nas ancas e baixou a cabeça.

- Não acha que levaria mais tempo?

- E se a menina fosse ver o documento que ficou em seu poder? Lá deve dizer.

Uma luz, que só posso interpretar de esperança iluminou o rosto da priminha. Saiu da sala a correr. Ouviram-se os passos de corrida escada a cima. A tia tinha uma expressão de censura.

- E lá vai ela. Não há maneira de se comportar condignamente.

- Deve ter aprendido consigo. – Dei por mim proferindo esta frase com todo o ódio que sentia por aquela mulher.

- Ai, não deve não. Sabe, fedelho, vocês estão a precisar de aprender umas coisas, mas não será comigo. Isso garanto-vos. E não façam essa cara de inocência. Ambos sabemos que o velho Capuchinho os pôs aqui dentro para amolecer a minha sobrinha. Mas garanto-vos que desta guerra só haverá uma vencedora. Eu. – Agora sim, o verdadeiro rosto da Bernarda revelou-se. – Por isso, sugiro que façam as vossas malinhas e saíam das terras da minha sobrinha, se não serão corridos como a alucinada mãe da fedelha aí foi no outro dia.

Saiu da sala e dirigiu-se para as escadas. Ao pisar o primeiro degrau disse:

- Oh, gentinha medíocre!

Ficámos na sala em silêncio e em choque. O ódio daquela mulher magoou-me. Mais, o meu próprio ódio por ela queimava-me a garganta.

Sem aviso, a Vanessa correu para fora da casa não nos dando tempo para uma reacção pronta. Tenho a certeza que ia a chorar.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

73 – Às vezes tanta frontalidade e honestidade metem-me nojo

A minha alma estava parva. Como é possível alguém ter tanta bazófia? A Clarissa deve ter pensado o mesmo.

- A tia está a ser, no mínimo, um pouco indelicada com as pessoas que nos estão a dar hospedagem.

- Ora querida, é do interesse deles tratar-nos bem. Afinal somos os donos disto tudo.

- Somos? Onde é que a tia entra como herdeira?

- Ah, começo a reconhecê-la. Claro que a menina é a herdeira. Eu... eu somente sou a sua tutora.

- Nada lhe dá o direito de ser indelicada.

- Claro, que não, querida. Não era essa a minha intenção. Eu somente comentei a possibilidade de este problema ser em breve resolvido. Ao que pude ver os dirigentes desta... localidade, estão reunidos. Só pode significar uma coisa... estão a chegar à conclusão que a menina é a herdeira do dono destas propriedades. A única herdeira.

- E o que é que isso muda?

- Ora, querida, tudo. Não era a menina que sonhava ter uma quinta? Fazer agricultura biológica? Viver em contacto com a natureza? – A expressão da Clarissa carregou-se muito, já a tia parecia uma santa a falar. Nunca vi tão má representação. – Os meninos sabem? – Dirigiu-se para nós, ignorando a Vanessa que parecia muito perturbada. A Vanessa ora olhava para ela, ora para a tia. – Quando descobrimos a herança, nós as duas fizemos muitos planos. Tamanha fortuna devia ser aplicada em benefício de mais pessoas para além de nós. Nós somos pessoas simples. Muita gente, muitos pobres irão beneficiar desta herança. A Clarissa projectou a criação de um albergue para sem-abrigos. Não foi querida?

- Esses sem-abrigo, seremos nós? – Perguntou a Vanessa com lágrimas a despontar.

- Não ligues ao que a maluca da minha tia diz. – Aproximou-se da Vanessa, mas esta recuou para junto da janela, encostando-se ao reposteiro. – Nada está decidido. Nem...

- Já falas como dona de tudo. – A voz da Vanessa era sumida, ouviu-se algo como se fosse um guincho. Senti o Mike a dar um passo em frente.

- Mas claro que é a dona. – A tia devia estar a divertir-se. – Nem outra coisa nos passa pela cabeça. A Clarissa é neta legítima do Teotónio da Silva. Mas não fique perturbada querida... Vanessa... a Clarissa nunca falhou aos seus amigos. A menina certamente não ficará sem casa.

- Tia, pare com essa conversa!

- Clarissa, estou a começar a ficar aborrecida consigo. A menina tem que ser honesta com os seus amigos. Não lhes venda a ilusão de que tudo vai ficar na mesma, porque não é possível.

- A tia pare com essa conversa, está a distorcer tudo.

- Não estou nada. Eu só não quero que os seus amiguinhos estejam iludidos ou criem falsas esperanças. Eu sou muito frontal. A menina é dona destas propriedades. Propriedades onde eles e as suas famílias vivem ilegalmente. Tanto perante a menina, legitima proprietária, como perante as autoridades do país. E isso já a envolve a si directamente. Se as autoridades descobrem esta ocupação ilegal, é a dona das terras que será primeiramente responsabilizada. Eu acho que tendo a menina amizades aqui, devia avisá-los para os perigos e para a inevitável necessidade de eles procurarem habitação noutro lugar. A menina não se pode dar ao luxo de ter toda esta gente nas suas propriedades sem as formalidades legais necessárias. Esta situação está em violação de diversas leis. Antes de chegarmos cá já sabia disso. Já tínhamos falado nisso diversas vezes. A menina sempre foi defensora da legalidade.

- Tia, não distorça as coisas.

- Não estou a distorcer nada, querida. Temos que ser frontais e honestos. Esta cidade terá de ser demolida. A menina bem me tinha dito isso antes de chegarmos. Ter uma cidade totalmente ilegal nas suas propriedades vai contra todos os seus princípios.

terça-feira, 24 de maio de 2011

72 - Urbanização

Depois deste começo meio atribulado lá nos encaminhámos para a casa do Dr. Capuchinho em harmonia. A caminhada, como já deu para perceber, não foi longa, já que nesta cidade nada está muito longe. Uma rua, outra, um cruzamento e já estamos a chegar. Mais uns passos naquela pacata artéria e a bela casa do avô da Joana mostrava-se ao pouco sol que despontava por entre as nuvens. Depois de uma manhã de nevoeiro estava a começar uma tarde de tempo instável, algum vento, abertas e ameaços de aguaceiros.

Se o ambiente climatérico apresentava-se incerto, algo revolto, o clima que fomos encontrar dentro de casa não estava melhor. A dona Maria abriu-nos a porta com o semblante carregado, mas não nos disse nada. Também não foi preciso. Antes de entrarmos na sala de estar ouvimos a voz da Clarissa:

- Tia, estou a ficar farta desta conversa.

- Ai, a menina hoje está tão susceptível!

A discussão, ou conversa animada, teve uma pausa com a nossa entrada. A Clarissa e a Vanessa estavam de pé. A sobrinha em frente da tia, que permanecia sentada, e a visita perto da janela com cara de caso. Também de medo ou vergonha, não sei bem. Nunca é coisa boa de se ver uma discussão familiar. A tia foi rápida a dar-nos as boas-vindas:

- Ah, chegaram mais uns quantos do gang. – Olhou para a porta como que à procura de alguém. Sempre sentada. – Então, o namoradinho? E a coisinha? Não vieram?

Coisinha? Oh, hoje o dia está a correr lindamente! Como é que aquela carcaça falsamente recauchutada ousa chamar de coisinha ao melhor ser do universo? Felizmente para aquela... aquela... nem sei o que lhe chamar sem baixar o nível, felizmente para ela a Clarissa interveio.

- Tia! Isso são modos? Não trate assim os meus amigos!

- Oh, querida, entendeu tudo mal. – Então e eu, entendi como? – Não me lembro como se chama a outra menina. – Sorriu, mas nunca se viu sorriso mais falso à face da terra. – Do fundo do meu coração lhe digo que fico feliz por fazer amigos aqui nas suas propriedades...

- Lá está a tia... – A Clarissa devia estar a desesperar. Virou as costas à tia e afastou-se um pouco. Esta levantou-se insinuante.

- Mas querida... esta urbanização foi construída nas suas propriedades. Convém ter boas relações com as pessoas que aqui vivem, não é? – Virou-se para nós com a expressão de sinceridade e inocência mais falsa que vi. E já vi muitos filmes mal representados.

Houve um pequeno silêncio. A Clarissa voltou-se para ela com uma expressão de riso carregada ainda de irritação.

- Urbanização? A tia chamou a esta cidade urbanização?

A tia riu-se.

- Claro, querida. Você e eu já viajámos alguma coisa para sabermos que isto aqui de cidade tem pouco. Vá, concedo que seja uma vila, mas querida... isto é tudo ilegal. Nada disto está registado nos registos, nas conservatórias. Cidade? Oh, por favor!

sexta-feira, 20 de maio de 2011

71 - Medo

Para começar fiz bem em não vestir o casaco. O Mike veio ter comigo e passando o braço direito por cima dos meus ombros, deu umas palmadinhas no meu estômago.

- Então, Betinho, temos a barriguinha cheia?

- Ó, se tenho. Estou cheio até aos cabelos com a Bia.

- Ah, a pequena Beatriz chateou-te. Tadinho.

- Ouve, lá, meu, andaste a beber? Estás a usar muitos diminutivos.

- Desculpa, desculpa. Não precisas de usar palavras com tantas sílabas. Já percebi que estás chateado.

Mas o que se estava a passar? Antes do almoço o Mike brindou-nos com belas alarvices, agora depois de comido brinda-me com diminutivos e a palavra silaba, coisa rara saída daqueles lábios. E o pior é que o abraço viera para ficar. Manteve-o mesmo quando começou a caminhar em direcção da rua. Como ele é maior do que eu, fui levado. Devia ter uma expressão de espanto ou estranheza, pois parou e largando o abraço encarou-me.

- O que foi, meu?

- Isso pergunto eu. Estás estranho.

- Eu? Tu é que estás.

- Não. Não é novidade eu ficar chateado com a Bia, mas tu...

- É pá, um gajo já não pode estar bem disposto depois do almoço? Estás mesmo a ser a alegria da festa.

- É pá, desculpa, mas apanhaste-me ainda bastante furioso. Desculpa.

Medo. Estou a deixar que o meu peso na consciência me denuncie. Realmente o Mike é um rapaz geralmente bem-disposto. Gosta de comer, sobretudo a comida da mãe dele. Em segundo lugar fica a comida da minha mãe. Não me lembro da ultimamente ele ter andado menos alegre do que este exemplo. Eu é que estou diferente. Medo. E não é só por causa do graffiti em frente à igreja, nem só por causa do peso no bolso e na consciência, a Joana, ou o que sinto por ela, está a transformar-me. Neste assunto da Joana a hiena não foi tida nem achada. Emigrou. Pela primeira vez posso dizer que estou apaixonado. Quando a hiena imperava era mais diversão do que sentimento, mais show-of do que real interesse.

- Meu, tu é que me pareces diferente. Desde que começaste a ir à missa... estás diferente.

Raios! O meu melhor amigo, a pessoa que melhor me conhece, começa a ver a minha transformação… medo!

terça-feira, 17 de maio de 2011

70 – O que fazer, meu Deus? O que fazer?

A lata de tinta pesava-me mais na consciência do que no bolso. Mas vamos ser racionais. O peso na consciência não é por causa de algum remorso, e devia, nem porque compreendera que fizera algo de errado, que fiz, deve-se simplesmente ao medo de ser apanhado. Seria exposto perante a cidade, teria um montão de pessoas à perna. Sem contar com os meus pais, teria o Mayor, o Dr. Capuchinho, pai e filho, todos os membros do Conselho Municipal, o Xerife e os adjuntos, a Natércia que não perderia a oportunidade para humilhar a família Ventura, todos os bem e os aspirantes. Pior, talvez nem a Joana me perdoaria, apesar de ela talvez estar no mesmo barco, mas nunca a denunciarei. Nunca.

Por isso foi com angústia que me vi sozinho nas traseiras da minha casa, fugindo das mulheres da família. Nem quero imaginar o ambiente em casa depois de desmascarado. Tinha que me livrar a lata de tinta. Olhei em redor. Vi o Mike a acenar da sala, que se via pela porta da cozinha, pedindo cinco minutos para acabar de comer, adivinho eu, uma musse de chocolate, sobremesa frequente à mesa dos Sousa da Silva. Na minha casa consegui ver a Isabel a comer à colherada uma metade de papaia, fruta recentemente introduzida na dieta familiar pela mão desta minha irmã. Se comi uma vez foi tanto.

Ok, não podia despachar naquele momento a porcaria da lata. Para mais que não havia caixotes de lixo nas ruas. Sendo domingo, logo cedo os donos dos dito caixotes arrumaram-nos. Só na noite de segunda para terça é que serão postos ao relento. Não tenho tempo nem oportunidade para me escapulir até à loja e deixar a lata algures misturada com as outras.

Senti naqueles minutos de espera indecisão e angústia, devia desfazer-me imediatamente daquele peso. Peso físico e peso de consciência. Para piorar não sabia se devia vestir o casaco ou andar com ele embrulhado no braço.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

69 – Eu e as mulheres da família

O nosso almoço em família foi tristonho, o meu pai esteve o tempo todo no Conselho Municipal e a minha mãe não conseguia esconder a preocupação.

- Mãe, - disse-lhe eu – o que de mal poderá vir desta reunião?

- Não sei, Beto, mas afligem-me estas reuniões repentinas

- Será que estão a discutir se a Clarissa é neta ou não do Sr. Teotónio?

- Tu estás muito interessado nessa Clarissa... – Disse com veneno na voz a minha irmã Beatriz. – Pelo que sei tens andado muito na companhia dela... a visitá-la... e tudo... É tua namorada?

- Bia, és mesmo anormal...

- Beto! – A minha mãe repreende-me sempre que sou mais indelicado com a Beatriz, mas a miúda tira-me do sério. Ela já teve o desplante de me dizer na cara, que sendo mais nova quatro anos, quatro, é mais madura do que eu porque as raparigas amadurecem mais cedo. Já viram isto?

- ... nessa tua cabecinha só cabem namoricos e paixonetas. Nesta história há algo mais importante que namoros.

A Isabel ria da nossa discussão. Ri-se sempre. É sinal que a Beatriz ou eu a deixámos em paz. Mesmo a rir, lá ajudou à festa:

- Mas lá que tens andado com ela, tens.

- Pois tenho. Ela está hospedada na casa do Dr. Capuchinho e ele pediu-nos para lhe fazermos companhia.

- E como é que chegaste ao conhecimento do Dr.? – Perguntou a minha mãe surpreendida.

- Através da neta, o pai não contou? A neta Joana é nossa amiga, minha, do Mike, da Vanessa e do Luís.

- Qual Luís? – A Isabel andava de namorico com um Luís, mas não é o nosso.

- Luís Peixoto, primo da Vanessa, filho do Abílio Peixoto, o proprietário. Sabes quem é?

A três mulheres da minha família disseram ao mesmo tempo um “ah” de reconhecimento. Seria difícil haver alguém na cidade que não conhecêssemos.

- Muito bem relacionado, sim senhor. – Comentou a Isabel. – Combinação estranha, mas os tempos nesta cidade andam estranhos...

- Bem visto, Bel, - A Beatriz estava a irritar-me com as maneiras de menina crescida dela, já de pequena senhora – parece que o Beto e o Mike lá conseguiram furar por entre a carapaça do provincianismo e ascender a um nível superior. – Se a Beatriz conseguir entrar nos Bem, não sei o que faço. Mudo-me para a casa do Mike!

- Alegra-me a alma constatar constantemente que insistes em ser uma fedelha insuportável e nojenta. – Disse eu levantando-me da mesa. Quando cheguei ao lava-louça com o meu prato, talheres e copo já tinha ouvido a minha mãe dizer:

- Alberto! Pede já desculpa à tua irmã!

A ferver por dentro, nem sei bem o que pensei ou quis fazer. Fiquei um minuto a olhar para o lava-loiças à espera de explodir. Não aconteceu. Surpreendentemente a minha mente ficou desanuviada assim que me lembrei da lata de tinta para frigoríficos. Se alguém, por exemplo a minha querida irmã mais nova, a descobre não bastará ir viver para a casa do Mike, talvez nem no país poderia ficar. Reorganização de prioridades. Dirigi-me à mesa e encarei a Isabel.

- Beatriz, peço desculpas pela minha linguagem. Como bem sabes, o meu desenvolvimento emocional e intelectual não ultrapassa o de uma miúda de sete anos. Por isso deixo para ti a adulta tarefa de lavar a loiça. Eu vou brincar.

Peguei no casaco, ainda com a lata a fazer peso e fugi literalmente de casa. Mesmo assim deu para ouvir as gargalhadas da Isabel e os gritos de indignação da Beatriz. A minha mãe deve ter exclamado o meu nome, mas não cheguei a ouvi-lo.

terça-feira, 10 de maio de 2011

68 – Gentilezas

A Vanessa acabou por ir almoçar com a Clarissa. A minha Joana também se ofereceu, mas o argumento da neta do senhor Teotónio foi mais forte: a dona Maria faz mais comida. Cada refeição naquela casa é quase um banquete. A tia Bernarda queixava-se muito de que o dona da casa queria expulsá-las da cidade através do excesso de comida. Ela há anos que lutava para não engordar e agora sempre que descia à sala de jantar, só de olhar para a mesa, engordava. E muito, já que a dona Maria é uma excelente cozinheira.

Por entre os nossos risos a própria Clarissa confessou ter aumentado de peso, mas não se importava. Desde que vivia com a tia andava mais magra do que desejava. Nesta semana silveirense ainda não chegara ao peso ideal, mas já aumentara um pouco.

- És um espanto, Clarissa. – Disse embevecido o Luís, desta vez até eu vi. – A maioria das raparigas não quer engordar.

- Fiquem descansados, assim que eu chegar meu peso normal, fico igual a todas as outras...

Neuróticas pelo peso e pela gordura, pensei eu. Tenho duas irmãs lá em casa, mais a minha mãe, bem sei o que é essa neurose. Mas enfim...

- Serás sempre especial. – Concluiu o Luís.

Meus amigos, nem tanto ao mar nem tanto à terra. Agora só falto eu ajoelhar-me e declarar o meu amor pela Joana. Por favor! Mas bem vistas as coisas talvez tivesse sido melhor. Cheira-me que esta minha mania de fazer as coisas de uma forma pouco convencional ainda vai causar muitas chatices a ver pela amostra de hoje à saída da igreja.

De uma forma natural cada um partiu para sua casa. Combinámos encontrarmo-nos por volta das duas da tarde ali no Point. Uma parte do meu trajecto foi partilhado pela Vanessa e pela Clarissa. Elas iam juntas, entreolhavam-se e portavam o riso sempre que o Mike dizia:

- Este Luís, este Luís.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

67 – A ver passar pessoas importantes

Ficámos ali um pouco a observar as pessoas a passar. Algumas nem tinham assento no Conselho, iam por curiosidade. Nós estávamos quase, quase a ir também quando o pai da Joana passou. Parou e cumprimentou-nos com simpatia. Ele também não sabia o motivo da convocatória tão urgente.

- Mas das duas uma: ou é por causa aí da vossa amiga – apontou para a Clarissa com um sorriso – ou é por causa desta onda de graffiti que tem assolado a cidade.

Todos concordámos. A Clarissa parecia envergonhada. Eu tentei não parecer. Afinal dois deles foram meus.

O Dr. Filipe Capuchinho foi embora com a recomendação de todos irmos para casa almoçar e chegou o meu pai. Cumprimentou-nos e mandou-me para casa. Encolhi os ombros para o Espinhos, tinha que ir. A Joana compreendia-me. Ao menos isso. E se ela for a autora dos poemas, mais me compreenderia... ou eu a ela.

Não tivemos tempo para ir embora pois do Workers Licor and Food saiu um pequeno grupo de personalidades da cidade encabeçadas pelo Dr. Capuchinho, sénior. Nós encostámo-nos à loja do meu pai para os deixar passar. O venerável saudou a neta com um beijo na testa e com um leve menear da cabeça à Clarissa. Os outros ignoraram-nos prestando toda a sua atenção à presumível neta do fundador da cidade. Encaminharam-se para a Câmara com pompa e circunstância. Pelo menos aos meus olhos.

Se pensámos que tinham terminado os cortejos reais, muito bem enganados estávamos. Faltava o cortejo principal. Do Fiona’s Boutique saiu a poderosa Natércia Brigadeiro seguida pela sua corte. Não digo coorte por respeito à Vanessa cuja mãe a integrava e ocupava um lugar de alguma proximidade à líder. Seguia logo atrás da Bella. Uma parte do grupo era casada com uma parte do grupo do doutor Capuchinho. Certamente irão encontrar-se ali à frente e confraternizar por bastante tempo, pois nem uns nem outros entrarão no Conselho.

O cortejo passou por nós, felizmente do outro lado da rua. Todas as cabeças subalternas viraram-se para nos mirar. Para nos mirar é favor, para observarem a Clarissa, isso sim. Atenção que eu disse cabeças subalternas, pois a tia Natércia e a falsa loura Bella nem de lado nos viram, tão focadas no ponto de fuga do horizonte estavam. A dona Clotilde ao ver a filha acenou-lhe convidando-a a acompanhá-la. A Vanessa virou-lhe costas e perguntou-nos:

- Quem é a alma caridosa que me convida para almoçar? Se ela vai ali, o meu pai ou já está lá em cima ou vem a correr. Não deve haver almoço em casa e não me apetece cozinhar só para mim...

Como o Mike era quem estava mais perto dela, disse:

- Estás convidada. Se lá em casa não houver comida suficiente, na do Beto há. – Às vezes o Mike tem umas saídas de cavalheirismo troglodita. – É pena estarmos já em cima do almoço, se não íamos para a tua casa e vocês meninas faziam-nos um banquete. - Por favor, Mike, cala-te!

Nem vale a pena descrever a reacção da parte feminina do grupo.

terça-feira, 3 de maio de 2011

66 – O estômago terá que esperar?

O Hide Park estava húmido e triste. O Verão de São Martinho já passara. Neste ano viera na altura certa. Passear pelo parque enchia-me de melancolia e de fome. Sim, fome. Ok, uma fome misturada com gula. Este tempo, neste local, invoca-me os petiscos gulosos da minha mãe. Chocolate quente à lareira lá de casa. Um belo bolo de laranja com nozes por cima. Uma tarte de maçã com uns poucos fios de ovos. Pudim de baunilha cremoso e pouco consistente. Castanhas cozidas, que depois de descascadas passavam por mel. Hum... um cheirinho de Porto na noite de Thanks Giving, que se aproxima. Lá em casa em vez do peru monumental que se vêem nos filmes a minha mãe costuma fazer uma bela caldeirada de marisco. Nas vésperas os meus pais deslocam-se a Setúbal para comprarem os ingredientes. Por cá na cidade a moda do peru é corrente.

Deambulámos pelo Hide talvez uma hora. O meio-dia aproximava-se e resolvemos dirigir os nossos passos para casa. Quase a chegar ao Point começámos a planear a tarde. A Clarissa tinha curiosidade em passar algum tempo no Young’s. Todos torcíamos o nariz à ideia, mas por ela talvez condescendêssemos.

Enquanto atravessávamos o cruzamento e discutíamos os prós e os contras, notámos uma certa agitação na Main, principalmente para os lados da Câmara. Da New England e de todos os lados víamos pessoas e carros dirigindo-se para lá. Por nós passou o senhor Peninha, vinha com cara de poucos amigos.

- Bom dia, senhor Peninha, - disse eu – passa-se alguma coisa?

- Deve passar-se, Alberto, para nos chamarem ao Conselho Municipal tão perto do almoço. Será que não podiam deixar passar a hora da refeição?

Ele caminhava visivelmente irritado.

- Terá sido por causa do que escreveram na parede da câmara, hoje cedo? – Perguntou a Joana.

O meu coração deu um baque. A lata de tinta para frigoríficos pesava-me no bolso. Com o passeio já me esquecera dela. Senti a cara a escaldar. Terá alguém reparado?

- Não sei, menina. A minha Maria contou-me. Não me acredito que alguém na Câmara esteja a roubar-nos, mas se estiverem... estão tramados, ai estão.

O senhor Peninha é conhecido pela sua frontalidade e veemência nos seus argumentos. Também por apreciar um bom manjar degustado com calma. Hoje se não tiverem cuidado o senhor Peninha fará jus à sua fama.