terça-feira, 29 de março de 2011

56 – A decisão da Vanessa

A pergunta ficou por responder. Quem quer que tenha escrito este novo poema era alguém que não conseguira aproximar-se de quem gostava. Até chegarmos à caso do Dr. Capuchinho tentei lembrar-me de como me relacionava com a Joana. Nós éramos próximos. Que mais queria ela? Que pergunta parva, o mesmo que eu: ser correspondido. Para isso devia declarar-me. Ui, problemas à vista. E se não for ela quem escreve os poemas?

Tive que deixar este raciocínio para depois. Chegámos. A dona Maria abriu-nos a porta com simpatia. O resto do pessoal já estava lá. Senti um calor na cara ao olhar para a Joana e pior, sentir o olhar dela em mim. Onde está um buraco quando uma pessoa precisa dele?

Embaraçado ou não, corado ou não, lá cumpri as obrigações sociais de aperto de mão ao Luís e beijos à raparigas. Terei alucinado ou houve uma descarga de electricidade quando a pele do meu rosto tocou na dela?

O Mike devia estar com vontade de contar o nosso desentendimento no cruzamento, mas o Luís quis saber como os nossos pais tinham reagido. Desvalorizámos os sermões. O mesmo acontecera com os resto do pessoal, excepto com a Vanessa que ficara sem mesada e sem renovação do guarda-roupa nos próximos tempos.

- Não faz mal, assim que eu entrar na universidade nunca mais ponho os pés nesta cidade. – Encolheu os ombros e sentou-se como se não afectasse cortar definitivamente com a família.

- E como vais pagar os estudos? – Perguntou o Mike.

- Se eles descobrirem que não quero voltar, arranjo um emprego e estudo de noite.

Olhou-o de frente durante algum tempo como que desafiando-o ou aos pais através dele, mas acabou por esconder o olhar que ficara raso de lágrimas. A Joana sentou-se ao seu lado, passando o braço por cima do seu ombro. O Mike sentou-se no outro lado e pegou-lhe na mão.

- Vá lá, não fiques assim. Estes castigos não duram muito. Eu já tive muitos e tudo passou.

Levou a mão livre à cara e começou a soluçar. A Joana falou:

- Não deves comparar as coisas. A Vanessa tem uma vida familiar diferente da nossa. Infelizmente não há muita harmonia, não é minha amiga? – Beijou-a na cabeça. A Vanessa acabou por encostar-se à Joana e esconder a cara no abraço desta. – Vá deita cá para fora, depois vais sentir-te melhor.

A Clarissa guardou uns papéis, que tinha nas mãos quando chegámos, no bolso das calças e acocorou-se em frente da Vanessa dando-lhe o conforto possível. Eu e o Luís ficámos de pé sem saber o que fazer.

O meu olhar estava na minha Joana. Ó como é bela! Como tem um coração maravilhoso! Naquele momento percebi não me interessar se ela era a autora dos poemas ou não. Se for, melhor, mas gosto dela por quem é, já não por causa do que imagino através daqueles escritos.

sexta-feira, 25 de março de 2011

55 – No cruzamento

Os meus pais ainda quiseram proibir-me de chegar perto da Clarissa, mas como em tantas outras coisas as decisões familiares passavam pelo aconselhamento com família do Mike. Neste caso, felizmente para mim, o Mike só foi sujeito a uma grande reprimenda. Depois do almoço já tudo tinha passado e nós os dois caminhávamos calmamente em direcção da Teotónio da Silva Street.

Ao passarmos pelo cruzamento voltei a minha atenção para o assunto do poema. Parei e reli-o. Era ali que a Joana queria que o lesse. Nem ouvi o Mike a perguntar-me porquê que parara. O que ela queria dizer? Não parecia seu, pelo menos não fazia lógica que fosse dela depois da minha resposta.

- Ó, Mike, quem é que tu achas que escreveu isto?

- Fui eu claro. Quem havia de ser?

- Escreveste o poema? Tu?

- Quem havia de ser?

Olhei para ele de frente em estado de choque. Ele falava com naturalidade. Algo estava a escapar-me.

- Tu escreveste como se fosses uma rapariga?

- O quê?

- O quê o quê?

- Mau. Beto estás maluco?

- Ahn?

- De quê que estamos a falar? – Tinha as mãos na cintura.

- Do poema?

- Sim.

- Estás a dizer que escreveste este poema?

- Yeah, não reconheces a minha letra? Beto, meu, estás maluco?

Olhei para o papel e percebi.

- Ó, minha grande besta! Eu estava a perguntar sobre quem tinha escrito o poema no chão. Estás parvo ou a gozar comigo? – A minha voz deve ter sido ouvida nas ruas até bem longe. Depois só se ouviram as gargalhadas do Mike. As minhas levaram algum tempo a fazerem-se ouvir.

terça-feira, 22 de março de 2011

54 – Como recordar o passado explica o presente

A chegada e leitura do comunicado reacendeu nos meus pais o episódio que eu julgava já passado. Quando cheguei a casa vindo da rádio, na noite passada, eles estavam à minha espera. Ouvi um sermão que esteve perto de chegar ao maior de sempre, tinha eu quase treze anos.

Nessa altura tive um ataque de ciúmes das minhas irmãs e fugi de casa. A Isabel gozava comigo e a Beatriz fazia queixinhas de mim por tudo e por nada. Nessa altura elas estavam aliadas e eu não suportei. Num dia de muita chuva passei-me da marmita, destruí tudo o que estava em cima da mesa. Era hora de almoço e a mãe delegara na Isabel essa refeição por ter ido ao médico fora da cidade. Não aguentei as brincadeiras e com as hormonas aos saltos parti os pratos, destruí o almoço, corri para a rua no meio do temporal. Andei desnorteado. Fui parar ao rio. Ainda furioso atirei o casaco para a água e refugiei-me no Hide Park, no coreto.

Entretanto, a mãe do Mike veio ver como nós estávamos. A minha mãe ainda não confiava completamente na adolescente filha mais velha e por isso pedira-lhe ir dando uma olhada. A Isabel não conseguiu esconder por muito tempo o que se passara. A vizinha veio à nossa casa para saber de mim, pois na barragem sul tinham apanhado o meu casaco.

O resto dá para imaginar. Todos pensaram que eu tinha caído ao rio ou saltado. As barragens pararam. A cidade mobilizou-se nas buscas. O Fiona foi esquadrinhado de lés-a-lés até ao início da noite. A minha mãe ia morrendo de desgosto quando chegou a casa. E o meu pai amaldiçoou a hora em que não dera ouvidos à esposa para vir tomar conta da casa em vez de ficar na loja.

Já era de noite quando o belo do Beto chegou a casa. Esperei que a chuva abrandasse, como não havia maneira de isso acontecer tive que meter-me nela. Cheguei a casa sem um poro sequer seco. Estava pior que um pinto. Encontrei um montão de gente à porta, fugi para entrar pelas traseiras. Encontrei a minha família na sala em pranto. A minha mãe agarrada ao casaco no sofá, com as minhas irmãs a chorar abraçadas às suas pernas. O meu pai de pé, apoiado à janela com os braços esticados, cabisbaixo a não ouvir palavras de consolo do pai do Mike. A mulher dele estava a dizer às pessoas para deixarem a família com a sua dor.

A minha entrada teve um quê de cinematográfico. Eu vim das traseiras onde estava escuro. Houve um relâmpago que me revelou a escorrer água ao Mike e ao irmão mais novo, Manel, que julgou ver um fantasma. O miúdo deu um grito histérico num tom de tal maneira agudo, ao ponto de ainda o chamarmos quebra-vidros, que assustou toda a gente. O Mike foi o único a ficar contente desde o princípio e riu muito. Foi a alegria dele que me fez aguentar o que se seguiu. Meses e meses de castigo sem televisão, rádio, livros de quadradinhos, só escola e casa a estudar ou a ler.

Devem imaginar o sermão que foi. Pois este esteve perto. Pelo que soube nessa manhã o Mike teve dose parecida. Desta vez chegaram a ameaçar-me com a prisão. Só que... desta vez... entrou-me tudo por ouvido e saiu-me pelo outro. Eu sei que não fiz nada de muito grave... por isso dormi bem a noite.

sexta-feira, 18 de março de 2011

53 - Comunicado

Aquela manhã de sábado deve ter sido de bastante trabalho para as autoridades e distribuidores de correio. Para além do poema inoportuno, as autoridades resolveram emitir um comunicado urgente. Urgente mesmo, tão urgente ao ponto de todos os silveirenses o receberem por escrito a meio da manhã. Os distribuidores de correio, os delegados e o xerife entre as nove e as dez da manhã notificaram todos os cidadãos.

O comunicado chegou lá a casa depois de eu voltar do local do poema. O meu pai e o do Mike tiveram que assinar como receberam o envelope. Estava pedido para que reunissem a família e lessem em conjunto. Ninguém teria o direito de alegar desconhecimento.
Rezava assim:

Comunicado do Conselho Municipal Silveirense

Concidadãos, a nossa cidade está a atravessar um momento crucial da sua história. A presença da alegada herdeira do senhor Teotónio da Silva está a agitar a pacatez da nossa comunidade.

Este Conselho reafirma a sua determinação em repor a paz social o quanto antes. As diligências anunciadas anteriormente estão em marcha. Em breve teremos todos o dados para a obtenção da melhor solução para todos.

Silveirenses, a compreensível ansiedade generalizada, levou-nos, sociedade no global, a um dos pontos mais infelizes da nossa história na passada noite. Por mais compreensível que seja a situação, é inaceitável a forma como a liberdade de circulação das visitas, nossas hóspedes, foi violada.

Enquanto a questão da herança do senhor Teotónio não estiver resolvida, é obrigação de todo os silveirense a boa hospitalidade e reserva da privacidade, liberdade, de cidadania, movimentação e recato da alegada neta e respectiva acompanhante. Elas têm todo o direito de circular nas nossas ruas como qualquer um de nós, sem serem molestadas.

Esta resolução foi votada por unanimidade pela comissão permanente do Conselho em reunião extraordinária. A violação desta resolução está sujeita à lei por desordem e desacato à autoridade.

Pelo Conselho Municipal
Mayor Albano Brigadeiro

terça-feira, 15 de março de 2011

52 - Novo poema

Olhas para mim, mas nunca me vês
à distância estão nossos corações.
Não me verias mesmo que fosse três
ou por ti chamasse a plenos pulmões.

Sofro perdida de amores, que louca,
minha pele ferve quando me tocas,
anseio pelos beijos dessa tua boca,
aspiro cega o ar que tu deslocas.

Porquê que não reparas em mim?

Logo de manhã a cidade de Silveira acordou com mais um poema pintado, desta vez no asfalto da estrada. Mais concretamente no cruzamento da Teotónio da Silva Street com a Ford Street (homenagem à fábrica de automóveis onde o venerável Teotónio iniciou a sua ascensão à imortalidade corporizada nesta cidade). Perto deste cruzamento está a casa do senhor Peninha. Pela Ford passamos da Teotónio da Silva para a rua onde vivo, a Sado Street.

Quando vim da rádio não passei por ali e por isso não vi o poema escrito a tinta branca no meio do cruzamento. Assim que soube fui lá ver. Já estavam a lavar o chão. O xerife estava com cara de poucos amigos e todos os importantes da cidade, que por ali circulavam, faziam-lhe companhia no aspecto do rosto.

Quem me contara do poema foi o Mike. Ele vira-o na companhia do Luís ao regressarem da casa do Dr. Capuchinho. Deviam ser umas dez e meia, onze horas. Deram logo conta do atentado (expressão das autoridades), pois estava escrito de forma a ser lido por quem caminhasse em direcção do cruzamento. O Luís escreveu uma cópia do poema para nós lermos. Se não o fizesse o mais certo era não chegarmos a lê-lo.

No regresso de ter ido ver o chão a ser lavado fui pensando no que o poema significava. Se a Joana o escreveu, porquê ali? Ela viu-me sair da casa do avô, como é que queria que o lesse? Algo não batia certo.

- Beto, porquê que foste ver o cruzamento? – Disse o Mike sentado no alpendre onde eu o deixara. – Já leste o poema, querias confirmar se o copiámos bem?

- Não sei. Foi algo do género de ir ver um jogo ao campo em vez de o ver na televisão.

- Man, desde o último grafitti que estás estranho.

- E tu já nasceste estranho. O que achaste deste poema?

- É diferente dos outros. Talvez seja de outra pessoa. Há muita gaja carente por aí. Eu não dou para todas. – Ri-se e aponta para mim. – Tu tens que mostrar mais empenho.

- Yeah e o Luís também. – Às vezes dizemos coisas destas para despistar o interlocutor, eu só queria consolar a minha Joaninha.

- Nã, o Luís já está apanhado... – Havia uma certa amargura na sua voz.

- O Luís? Reatou com a namorada?

- Nã... Ele ficou apanhadinho pela priminha.

- Priminha? Qual?

- A tua.

- Minha?

- A Clarissa. Dah!? Está lento hoje.

- A Clarissa? Ele? – Sim, agora reparava, eles tinham estado juntos bastante tempo. – Estou a ver...

- Vê-se. Hoje estás mesmo... Eu bem que queria variar um pouco, às vezes as silveirenses cansam-me, mas o Luís não a largou nem um pouco. Tive que sair ao mesmo tempo que ele, porque o Capuchinho queria deitar-se.

- E ela? Achas que está na dele?

- Yeah. – Voz triste. – Parece que sim.

- Mike, o Luís tem o direito de arranjar alguém, não tem? E ela também não mostrou nenhum interesse especial em ti... por isso, para quê estares triste? Move foward, man.

- Yeah, there’s plenty of girls in the world. – Disse ele com sotaque à cowboy exagerando no a aberto do girls. Rimo-nos.

sexta-feira, 11 de março de 2011

51 – Veneno adocicado

Aquele momento também não iria ser altura para desfiar por histórias antigas. Da porta da frente vinham sons de vozes irritadas. Conseguimos saber o que se passava graças à entrada oportuna da Tia Bernarda. Ainda vi a Natércia a gritar com a dona Maria. Olha quem. Trazia a reboque a cheerleader Bella e uma indignada dona Clotilde da Silva, mãe da Vanessa.

- Quem é esta gente sem modos? – Perguntou a tia Bernarda como se ela tivesse um vestido de seda salpicado com lama.

- A mais fina-flor silveirense. – Disse a Vanessa afastando-se para o vão escuro de uma das janelas.

O Dr. Capuchinho saiu fechando a porta atrás de si. Ficámos em silêncio. A tia parecia querer dialogar, mas ninguém esteve para aí virado. A Joana juntou-se à Vanessa. Pouco depois o Mike, também, passou o braço por cima dos ombros dela. A Joana segurava-lhe nas mãos e falava-lhe baixinho.

A Clarissa ignorava por completo as tentativas da tia para ficar a par do que se passava. O Luís ficou perto dela e eu vagueei pela sala. Estava triste pela Vanessa. Apesar do que dissera há pouco, no fundo ela temia que a mãe e o pai fossem prejudicados. Mesmo sendo como eram, continuavam a ser pais dela. Apesar de tudo gostava deles, como seria de esperar.

O dono da casa regressou com o ar venerável de sempre.

- Já está resolvido aquele pequeno problema.

- Alguém pode explicar-me o que está a passar-se? – Disse a indignada tia Bernarda.

- Com certeza, cara senhora. - O cavalheirismo do Dr. Capuchinho era mais letal que um estilete enferrujado. – A fina-flor, ou parte dela, esteve ali à porta indagando sobre o bem-estar da sua sobrinha.

- E foi preciso tanto chinfrim?

- Sabe, cara senhora, a natureza humana é deveras complexa. Por vezes os anseios e receios são expressões emocionais de feitios pouco recatados. Uma alma apaixonada tende para a exuberância. Cara senhora, o seu experiente coração certamente saberá do que estou a falar.
E assim com mel nos lábios e nos gestos o Dr. destilava pequenas doses de cicuta. A Vanessa ainda abalada pediu licença e foi embora. A Joana levou-a à porta e regressou dando um olhar significativo ao avô. Este convidou-nos para jantar. Eu tive que declinar por causa do trabalho na rádio. Até já estava atrasado. Despedi-me de todos com imensa pena.

terça-feira, 8 de março de 2011

50 – Mike saves the day

No momento em que o Luís acabou de falar entrou na sala visivelmente irritado o Dr. Capuchinho.

- Mas que diabo aconteceu? – Disse quase gritando.

Todos encolhemo-nos nos sofás. Livra, que era intimidante!

- Avô – levantou-se a Joana mais depressa refeita do susto inicial com uma certa ternura na voz (que linda!) – a culpa foi minha. Quis mostrar a cidade à Clarissa e gerou-se uma enorme confusão. Desculpe.

- O que tinhas na cabeça? Levar a possível neta do Sr. Teotónio para onde todos a vissem? E depois afrontar a First Lady? A jovem Bella? Queres causar uma rebelião na cidade?

- Senhor, a culpa também é minha – Disse eu, não suportava ver a minha Joana acusada de tudo. – Na altura não vi o perigo da situação.

- E quem o nomeou responsável pelo acto da minha neta?

- Ninguém e não sou responsável, mas ela não agiu sozinha.

- E fui eu quem levou a Bella ao carro. – Levantou-se de súbito o Mike. – Levei-a e levaria de novo.

A Vanessa olhava para o Mike com admiração. Imitou-nos, mas foi a voz do Luís que se ouviu:

- Acho que posso falar por todos. Achámos boa ideia mostrar a cidade à Clarissa. Ela passou uma semana inteira aqui presa. Não leve a mal, a sua casa é excelente, mas mesmo numa gaiola de ouro a ave sente-se presa.

Todos estávamos de pé. A Clarissa aproximou-se do dono da casa.

- Senhor Capuchinho, peço desculpa pela confusão. Realmente estava curiosa em relação à cidade. Não pensei. – Olhou para o tapete, estava triste.

- Menina Clarissa, não precisa justificar-se. A minha neta e amigos é que deviam ter mais tacto e atrevo-me a dizer esperteza. Com franqueza, então não imaginavam uma reacção destas?
Eu disse mais para mim do que para o ar:

- Não temos vocação política...

- Pois não temos, mas houve uma falha na organização da cidade. – Disse o Mike para espanto geral. – Já vimos comunicados à população para tudo e mais alguma coisa e sobre este assunto nada.

O Mike é espantoso. Conseguiu assim de repente dar a volta à questão.

- Ai tem razão. – Disse o anfitrião que por fim sorriu. Nunca o tínhamos visto sorrir. A Joana descontraiu os ombros. Talvez tudo tivesse passado. – Ai a imprudência da juventude... Foi uma dessas, na vossa idade, que levou o Teotónio aos Estados Unidos. Vocês já contaram a história do senhor Teotónio da Silva à menina Clarissa?

Não, claro que não. Nem nos passou pela cabeça semelhante ideia. Tive vontade de perguntar ao venerável dono da casa onde andara nas noites passadas ao jantar para ainda não ter contado a história às forasteiras. Não perguntei, nem pergunto. Livra! Morria se tivesse outro olhar irritado dele. Livra!

sexta-feira, 4 de março de 2011

49 - Os receios de Clarissa

Como já era de noite foi fácil chegarmos à Teotónio da Silva Street sem que nos vissem. Enquanto riamo-nos conforme as nossas personalidades, a dona Maria avisava o meu pai e o Xerife da nossa localização. A Joana ofegante à chegada ainda tivera o auto-controlo suficiente para explicar a situação à governanta do avô.

Na sala o cenário era o seguinte: eu e o Mike num sofá a chorar a rir, à nossa frente a Joana e a Vanessa agarradas uma à outra, o Luís ria muito com a Clarissa contagiada pela gargalhada geral, mas algo receosa, no sofá que formava outra parte do quadrado. Sempre que ela tentava convocar a sua preocupação com a situação o nosso riso levava-a atrás.

Ao fim de algum tempo lá nos acalmámos. O Luís assegurava à Clarissa que a nossa fuga não iria ter consequências maiores. Ela levantou objecções, as autoridades tinham sido convocadas. O Luís, e nós com ele, disse que a autoridade pouco ou nada têm para fazer, que ser xerife ou delgado era a melhor profissão da cidade. Há quanto tempo eles não tinham uma alteração da ordem pública? Se bem me lembro, tirando a chegada das forasteiras no domingo passado, foi há quase dois anos quando dois irmãos na noite de Thankgivings abusaram da bebida e andaram pela cidade a cumprimentar toda a gente. Ao fim de algum tempo reagiram mal a alguns cumprimentos menos amistosos e gerou-se reboliço, que fez encher a prisão. Doze detenções, oito alcoolizados e quatro ligeiramente feridos.

O trabalho da nossa polícia é o pedagógico. Vão muito à escola ensinar-nos civismo e cidadania. Anda pelas ruas à noite para encaminhar alguém com um copinho a mais. Vigiam as nossas “fronteiras”. Mantém a ordem nas tarde e noites de animação no Hide Park e nos diversos acontecimentos desportivos, sobretudo ao ar livre.

O Luis explicou isto tudo à Clarissa, nós corroborámos e por vezes ríamos sobre um ou outro episódio. Ela estava preocupada com a reacção da Natércia. Pelo que nós tínhamos contado, ela parecia ser poderosa e não era conveniente para nós afrontá-la. Eu disse:

- Prima, os meus pais estão queimados para ela há bué. – Sim o calão português também chegou cá. – O meu pai largou a irmã dela pela minha mãe. Parece que foi um escândalo na altura. Por isso não há crise...

- Clarissa – disse a Joana – eu sou neta do único fundador vivo, como sabes, mas as relações entre o meu pai e o meu avô estão longe de serem amistosas. Com a tua vinda é que houve uma pequena aproximação, mas não nos iludamos.

- Eu – disse o Mike – sou um zé-ninguém para os poderosos da terra. O meu pai trabalha na barragem norte e a minha mãe em casa. Eu sou conhecido, mas os meus pais não. Por isso...

- Eu talvez tenha problemas – disse a Vanessa subitamente mais séria – a minha mãe tem a triste fixação de nos fazer ascender na escala social, mas não faz mal. Interesseira como é, verá que fiz muito bem aliar-me a ti.

- Obrigada pelo vosso apoio. Eu não quero que sejam prejudicados por minha causa.

Todos sorrimos. O Luís era o único menos sorridente. Olhava para ela com ternura. Percebi que a namorada de Sabugal do Sado passara definitivamente à história.

- E tu, Luís, - disse a Clarissa que talvez tenha reparado que o rapaz não dissera nada – vais ter problemas?

- Eu? – sorriu e pareceu crescer quando a encarou de frente – O meu pai é um poderoso produtor de arroz, talvez mais rico que todos os poderosos juntos da cidade. Se algum de nós ou das famílias for prejudicado, o meu pai terá todo o gosto em ajudar. Nós de todos os silveirenses, somo os menos americanizados.

terça-feira, 1 de março de 2011

48 – Quando o caçador passa a presa

A improvável entrada da poderosa Natércia Brigadeiro no Grand Groceries do meu pai tinha por objectivo óbvio a aproximação à forasteira.

- Ora bem, Ventura, onde está a nossa ilustre visita? – A primeira dama silveirense não usa tantos artifícios linguísticos como o marido, mas consegue ser irritante. Aquele bronzeado de solário, o cabelo louro esticadíssimo que grita aos sete ventos por falsidade, os gestos afectados, a pose de aristocrata. Uma irritante tia.

Os cinco cercámos a pobre Clarissa esquecidos da convivência dela com a própria tia. Entre uma e outra venha o diabo e escolha. O meu pai não precisou de dizer onde ela estava.

- Ah, está aí minha querida. – Aproximou-se de nós como se fossemos de vidro. Fez a apresentação formal de si e da filha. Para nosso espanto a Clarissa passou por mim, que continuava como ponta de lança, e foi cumprimentá-las na face só com um beijo, mal se tocando. – Sabe Clarissa, minha querida, achei que iria precisar de uma companhia para a sua estadia por cá. Por isso fiz questão de lhe apresentar a minha Bella. Certamente terão muito em comum.

- Muito obrigada – disse a Clarissa tão afectada como a toda poderosa First Lady – certamente que teremos.

Na minha cabeça surgiu a portuguesíssima expressão “yeah, right!”. A Bella apesar de saber representar bem o seu papel, por vezes pareceu-me estar tão enfastiada como nós, mas por motivos contrários.

- Perfeito. – Continuou a Natércia. – Minha Querida, a Bella está à disposição sempre que precisares.

- Vou dar-lhe os meus números de contacto. – Pela primeira vez assistimos à cheerleader a articular uma frase completa em muito tempo. Ela não gasta o seu preciso latim com gentinha da nossa laia.

Silveira tem um sistema de tratamento de águas pioneiro no mundo. Tem um sistema de ensino bastante bom, há que reconhecer. Tem qualidade de vida invejáveis, mas não aderiu aos telemóveis. Somos felizes com a nossa vidinha simples da década de cinquenta americana. Por isso o cartão de apresentação da Bella B tem vários números de telefone: o de casa, o da Fiona’s Boutique, o da escola, o da Young’s e uns quantos mais dos vários poisos da jovem cheerleader. Quem quiser falar com ela terá que ir tentando até a encontrar.

A Clarissa mostrou-se surpreendida, talvez confusa, mas disfarçou fingindo interesse pelo conteúdo do cartão. Mais tarde acabaria por perceber quando lhe explicámos. Mais uma vez agradeceu à jovem tão loura como a progenitora e falsa também.

Não houve oportunidade para maiores diálogos, porque o veículo chegou e com ele um aumento da confusão. Várias pessoas entraram na loja. A Joana pegou no braço da Clarissa e arrastou-a para o fundo da loja, levando-a para as traseiras. Nós percebemos a ideia e começámos a andar de um lado para o outro. A confusão cresceu. O Mike sempre pronto para socorrer uma cheerleader em apuros passou o braço por cima dos seus delicados ombros e levou-a para a rua, afastando toda a gente que aparecia em frente. Chegaram ao carro e sem rodeios largou-a lá dentro. Com o descontrolo da confusão, várias pessoas chamavam e procuravam a neta do Sr. Teotónio, assim que o Mike fechou a porta o carro arrancou com estrépito. Não foi a toda a velocidade, mas o suficiente para atrair muita gente deixando campo para os Espinhos fugirem pelas traseiras com a verdadeira neta do fundador da cidade. Quando o motorista se apercebeu da identidade da histérica passageira já nós estávamos bem longe a chorar de tanto rir.