sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

39 - Êxtase

A voz da Manuel Castro suou nos meus ouvidos enquanto deslizava como um fantasma pela casa às escuras.

- O álbum ágaetis byrjun catapultou o grupo para o estrelato internacional. Os Radiohead convidaram-nos para fazerem algumas primeiras partes dos seus concertos em Inglaterra. Conseguiram entrar no difícil mercado americano e actualmente estão entre as principais referências da música mundial. Em 2002 saí o terceiro álbum. Este disco tem várias particularidades que o tornam especial. Não tem título, usando-se normalmente dois parênteses que figuram na capa de plástico branco. Os oito temas também não têm título e a língua usada é vonlenska, hopelandic em inglês, algo como esperancês. O grupo já usaram em alguns temas dos discos anteriores esta espécie de língua, que não é mais do que sons articulados pelo vocalista para depois ocupar por palavras, mas no caso dos sigur rós resolveram usar essa técnica de composição como forma de expressão artística. Todo cd é branco e no livro que o acompanha não há nada escrito. Só folhas translúcidas com leves tingimentos fazendo lembrar ramos sem folhas. A ausência de palavras leva o ouvinte a poder preencher as músicas com palavras suas, as folhas brancas com poemas seus, os títulos com referências suas. Outra característica peculiar desta banda e que lhe dá uma áurea tão especial é o uso dado à guitarra. Jónsi toca a guitarra na maioria dos temas usando um arco de violoncelo, imprimindo ao instrumento uma sonoridade muito especial. Chamo a atenção para o seguinte tema, faixa número oito, do terceiro álbum.



Passei pela arrecadação de casa e na minha cabeça sentia tanto o dedilhar da guitarra como o tal som arrastado. O meu coração batia a mil. Trazia uma camisola com capuz. Coloquei-o e corri, procurando passar nos sítios mais escuros. Olhava para todos os lados, mas não via ninguém. Felizmente por estas bandas é usual haver nevoeiro de noite. Evitei passar pela Main e até pelo Point.

A música avança num crescendo sem pressa. A bateria é bastante interventiva. A voz adquire ao longo do tema um carácter novamente angélico. O baixo corre certo e imperioso. E a guitarra deixa o dedilhado para assumir a posição de orquestra. Quando a música atinge um ritmo energético e por fim explode eu sai do canto escuro, abro a lata de tinta azul, molho a trincha e escrevo:

para ti que me procuras
para ti que me desejas
aqui estou na calada da noite
acordei
agora procuro-te
agora desejo-te
quero ser o teu salvador
sabes onde me procurar

Nos meus ouvidos a banda estava num climax apoteótico. O baterista usava mil braços. A voz cortara profundamente pelo espaço, pelo tempo até ao transcendente. E a guitarra tangida pelo arco de violoncelo ecoava a melodia fazendo-a brotar não dos auscultadores, mas do coração. Ajoelhei-me diante da parede onde escrevera a minha mensagem em êxtase.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

38 – Sigur Rós



A música seguinte não teve apresentação. E eu estava despertadíssimo. Guitarras sem distorção, bateria presente e as vozes. O Manuel falara de uma voz, mas eu ouvia várias. Seria homem? Seria mulher?

Estava com vontade de fazer alguma coisa. Mas o quê? Pensava na Joana, como estaria sabendo que as suas palavras estavam apagadas, que não obtivera resposta.

O rádio ficou em silêncio. E a voz do Manuel após uns breves segundos disse:

- Acabámos de ouvir três temas do primeiro disco dos Sigur Rós. – Eu só notara dois – O primeiro Terra Mãe é uma transposição do Pai Nosso cristão para uma fé panteísta ou da Deusa Mãe. O segundo tema chama-se Myrkur, em português Escuridão, e fala genericamente dos primeiros vislumbres da alvorada. O silêncio escutado depois chama-se “18 segundos antes do nascer do Sol”. O Sol, a esperança, nascem do mar e da terra.

‘Sigur Rós, o nome da banda, é igualmente o nome da irmã de Jónsi o vocalista e guitarrista da banda, que podemos traduzir por Rosa da Vitória e que nasceu no mesmo dia em que nasceu a banda, em Agosto de 1994. Lançaram o primeiro álbum, Von, em 1997. No ano seguinte sai um álbum de remisturas onde aparecem alguns dos nomes mais famosos da pop islandesa, entre eles Gus Gus. Em 1999 sai o aclamado segundo disco de originais, ágaetis byrjun, “um bom começo”, do qual estamos a ouvi os primeiros acordes da segunda faixa. Chama-se algo parecido com svefn-g-englar, sonâmbulos.


Esta música começava muito calma, como que vindo de longe. Será por saber que eles vêm da terra do gelo, mas visualizo um mar largo, gelo e uma aragem gélida. Que som é aquele, grave, profundo, arrastado?

A voz vem sozinha, límpida. Tranquilidade. Ao fim de algum tempo ouço tioowoohoo entoado por aquela voz imaterial, irreal. Aquele grito rasga os espaços, passa cortante pela crista das ondas, como um relâmpago rasgando as nuvens. Após vários gritos atinge um climax e depois recomeça a busca. Como um espírito de cristal procurando a sua alma gémea ele voga, vai para outras paragens. Volta a entoar tioowoohoo e parte para longe, só se escutam sons marítimos e depois a voz do Manuel:

Aqui estou de novo
Dentro de ti
É tão bom estar aqui
Mas não posso me demorar
Eu flutuo errante numa hibernação líquida
Num hotel nutritivo, num quadro eléctrico
Tyoowoohoo
Mas a espera incomoda-me, não quero saber da fragilidade
E grito, “Tenho que ir”, socorro
Tyoowoohoo
Arrebento e a paz desaparece
Banhado numa luz nova
Eu choro e choro, desligado
Um insólito cérebro veste-se de seios
E é alimentado por sonâmbulos

Após uns breves batimentos entra outra música e o locutor diz:

- De seguida, a quarta faixa, O Salvador das Moscas, flugufrelsarinn.



Os sonâmbulos transportaram-me para mais perto da Joana, já sabia de algo para lhe dizer. Durante este Salvador das Moscas ganhei coragem. Levantei-me e vesti-me à pressa. Sim, tinha uma urgência de fazer algo, pressa para não deixar morrer o impulso e pensar melhor.

A voz parecia-me magoada, mais próxima do humano, que as anteriores. Salvador das moscas. Quem quer ter esse papel? A voz diz-me que tem um papel na vida que não escolheu e por isso é herói. Alguém que se preocupa com o que os outros não se preocupam. Um herói. Joana, vou ser o teu herói. Como a voz da música quero abrir os meus pulmões e dizer “não estás ignota”, “o que te leva a esconderes-me o teu coração?”, “vem, protejo-te”. Senti uma emoção nova a bloquear-me a garganta. Peguei no rádio portátil e nos auscultadores e saí cautelosamente para a noite.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

37 – Uma voz na madrugada puxa por mim

(Nota prévia: Aconselho a pôr a música à medida que vai lendo o texto
e esperar que acabe para ouvir a música seguinte.
Assim desfrutará de toda a experiência)



O que foi que ouvi? Uma simples melodia de piano, que depois foi crescendo, com o acrescento de mais instrumentos, até aparecer uma voz que tive dificuldade em identificar se era de homem ou de mulher. Não era só uma, havia outra também, ambas parecidas. O que dizia? Não sei. Nunca tinha ouvido semelhante falar. De repente acalmou e suou a palavra hopipola. Gostei da palavra. A música deu-me alegria e conforto. E os instrumentos de sopro entraram, a voz tornou-se mais aguda. Escutei com atenção. O meu coração batia com força. Imaginei-me cantando aquilo para a Joana, estando eu de um lado do rio Fiona e ela do outro. Mas que bela música para se ouvir às duas da manhã. Tive que baixar o som do rádio para ninguém na casa acordar.

A música desvaneceu-se e a voz profunda do Manuel Castro murmurou enquanto a melodia voltava:



Sorrindo
Girando numa roda viva
De mão dada
O mundo numa mancha
Mas tu estás parado

Molhado
Completamente encharcado
Sem botas de borracha
Correndo em nós
Quer sair da casca

Venta
E lá fora cheira ao teu cabelo
Eu bato o mais rápido que posso
Com o meu nariz

Patinhando nas poças
Completamente encharcado
Molhado
Descalço

E sangro do nariz
Mas levanto-me sempre
(esperancês)

E sangro do nariz
Mas levanto-me sempre
(esperancês)

- Assim canta o Jónsi dos Sigur Rós, banda islandesa posta a descoberto esta madrugada. O tema que acabaram de escutar chama-se Hoppípolla, Patinhando, numa tradução minha do inglês, tal como os vários poemas que apresentarei. O tema que estão a ouvir em fundo chama-se em português “Estou a sangrar do nariz” e é obviamente uma variação sobre um tema de Hoppípolla. Este dois temas estão presentes no mais recente disco dos Sigur Rós, Takk, Obrigado em português. Mas comecemos a nossa descoberta pelo primeiro disco, de seu nome Von, Esperança, com a faixa três, cujo o nome acho impronunciável, mas deixo a tradução: Terra Mãe.




O som desta música era totalmente diferente. Era sujo. Havia distorção, a bateria não se ouvia. Vieram as vozes, ainda mais femininas. Prenderam a minha atenção, havia uma expectativa, algo por acontecer. Deixei-me levar pela música. Agora parecia mais com música rock e no entanto havia algo de angelical. Talvez por causa das vozes. A melodia.

Tive que baixar mais um pouco o som. A bateria surgiu em rajadas, a distorção subira. Havia ritmo, melodia e mistério. Senti uma energia nova em mim. Queira fazer algo extraordinário, espectacular. Entrou uma voz masculina também distorcida. Era uma catarse, vagas após vagas de aquela melodia que me impelia para agir. Tinham apagado as tuas palavras, Joana. Querem apagar o que sentes. Na música uma calma tensão. Risos lá longe. Senti-me magoado, por ela, por ti Joana, não serás esquecida.

Dou um salto na cama com o grito distorcido que irrompe do rádio. Tenho que fazer alguma coisa. A banda está no máximo, a voz distorcida grita depois de rir, o mundo todo agoniza em dor. O mundo todo? Ou a verdade que está para ver a luz do dia? São as contracções do parto. Vagas do mar, fluxo e refluxo. Agora ele grita, mas a música volta para trás. E termina.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

36 – A Descoberta da Madrugada

O pessoal que foi adolescente nos anos oitenta de século vinte teve uma experiência que nós agora não temos. Experimentaram as emoções de só haver dois canais de televisão e de todos consumirem novela brasileiras com fervor. É de uma delas que eles aprenderam a respeitar a noite de quinta para sexta-feira, sobretudo se for de lua cheia. É nesse dia que a transformação do lobisomem é mais espectacular.

Ora foi naquela noite de quinta para sexta que eu me transformei num rebelde serigador de paredes. Nome este aplicado pelo director do Liceu numa comunicação à escola que foi lida nas primeiras aulas da manhã e da tarde, para além de ficar exposta em todos os placardes. Mas voltemos à noite e veremos o quão injusto foi o director.

Foi naquela quinta-feira que sucedeu o narrado no capítulo anterior. Apesar do ambiente mais descontraído estava numa disposição esquisita para meditar, pensar na vida. Mau sinal. O trabalho na rádio correra bem, sem episódios dignos de registo e fui para casa. Quando ia a passar pelo Point lembrei-me do poema. Passei por lá de propósito, mas o meu pai já tinha pintado por cima e aproveitara e limpara a cara à loja. Pensei se aquela história ficaria por ali. Os primeiros versos também já tinham sido apagados. Toda a gente só falava da Clarissa e da tia. E, está claro, do silêncio do Concelho Municipal sobre o assunto.

Mal cheguei a casa, fui deitar-me e até adormeci bem, mas foi sono de pouca duração. À uma e meia acordei com um sonho em que toda Silveira tinha sido abandonada e demolida só sobrando a casa do Teotónio e a rádio. A tia da Clarissa estava de robe a correr comigo de vassoura da rádio, onde agora vivia. Do lado de fora estava a Joana à minha espera dizendo: “Só podes rir se não fores gay”. Acordei com o eco de uma gargalhada nos meus ouvidos.

E depois para dormir? Para onde fora o sono? Virei-me para um lado, virei-me para o outro. Estava frio, mas a cama estava quente demais. Desisti de tentar adormecer e fiquei pensando coisas soltas até chegar aos poemas e à desconfiança sobre a sua autora. Havia uma rapariga que gostava de um rapaz, que ignorava esse amor. Seria mesmo a Joana? Queria eu que fosse ela? Ó, sim, queria.

Satisfeito com a resposta ao menos a uma pergunta resolvi ligar o rádio. Àquela hora devia ser o próprio Manuel Castro a fazer a emissão. Como dono, podia deitar-se quase de manhã e dormir durante a manhã, onde a responsabilidade era do Concelho.

O Manuel Castro é um apaixonado pelo mundo da rádio e também por música. Ele é o principal divulgador do que de moderno se faz para lá do rio Sado. E por vezes nas madrugadas ele lança novos autores e estilos mais alternativos, que de outra forma nunca seriam escutados na Silveira.

Eram duas da manhã e ouço o gingle do programa “A Descoberta da Madrugada”. Ok, o Manuel pode ser um grande radialista, mas como autor de títulos de programas tem muito para aprender.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

35 – Da fama ao preconceito

Só quando me deitei é que voltei a pensar no poema escrito na parede e na quase certeza de ter sido para mim dirigido. Seria alucinação minha esta ideia de que a autora era a Joana? A resposta talvez tenha chegado, mas não esquecemos que pouco ou nada tinha dormido na noite passada. Realmente questionei-me, mas não tive tempo para mais nada. Dormi que nem uma pedra até à manhã seguinte.

A bem da verdade só voltei a pensar no assunto alguns dias depois. Na escola, tal como na cidade, só se falava das forasteiras. Devido ao relativo parentesco com a Clarissa, facto bem conhecido de todos pois a genealogia é como que um desporto nacional por aquelas bandas, fui abordado diversas vezes nos corredores da escola. Tinha começado a minha breve carreira de figura popular, normalmente reservada às Chearleaders e desportistas de topo. Devo dizer que não gostei, naquele momento apreciava muito mais a companhia dos Espinhos e se não o coração pelo menos a cabeça estava ocupada com a Joana para aproveitar o súbito interesse das mais bonitas raparigas da escola pela minha pessoa. Está claro que a feias também apareceram.

Quando o Mike percebeu que eu não estava nem aí para o mulherio que nos aparecia, veio questionar-me severamente.

- Man, o que estás a fazer? Está a chover-te gajas na soleira da porta e tu negas fogo! O que se passa? Não te viraste para o inimigo, pois não?

Eu fartei-me rir na cara dele.

- Estás com medo que queira roubar-te um beijo?

- Arrebento-te todo!

- Sempre pensei que fosse meu amigo, mas pronto, és um bronco. O que se há-de fazer?
Naquele momento apareceram os restantes Espinhos que quiseram saber porquê que eu estava a rir e o Mike tão transtornado. Respondi-lhes:

- Aqui o Mike, um homem às direitas, está assim porque pensa que eu, seu amigo de berço, sou gay. Só dá vontade de rir.

Por momentos pensei que todos pensassem o mesmo, pois ficaram com uma expressão estranha. De repente fiquei magoado. Como poderiam pensar uma coisa daquelas? Para mais sendo meus amigos, que me conheciam uns melhor do que outros, mas todos nos conhecíamos o suficiente. A Joana veio com uma frase que ajudou a situação, mas fez-me pensar muito:

- Só dá para rir se tu não sendo não tivesses nenhum problema em ser.
Tocou a campainha para a próxima aula. E ninguém mais falou. O que a Joana disse deu-me que pensar e muito. Eu estava indignado porque os meus amigos não me conheciam suficientemente ou porque pensavam que eu era gay? Se eu fosse, eles seriam à mesma meus amigos? Talvez as raparigas sim, mas e o Mike? E o Luís? E se fosse ao contrário, seria eu amigo de um gay?

O que foi dito naquela aula? Não sei dizer, levei o tempo todo a pensar naquilo. À saída procurei juntar os Espinhos num local isolado e disse-lhes:

- Estive a pensar este tempo todo e tenho algo para vos dizer. Se qualquer um de vocês fosse gay, eu continuaria a ser vosso amigo. Podemos até dizer piadas sobre o assunto, mas nunca quero esquecer, que apesar da possível confusão que nos faça à cabeça, todos somos pessoas e todos merecemos respeito. Os preconceitos são como gás sem cheiro, cerca-nos e não damos por eles. Mas isso não quer dizer que pensando bem no assunto não tenhamos uma opinião totalmente contrária ao preconceito. Por isso digo-vos que estou magoado, não por pensarem o quer que seja sobre mim, mas porque apesar da nossa amizade passariam a agir de outra forma.

As raparigas manifestaram-se logo dizendo que pouco lhes importaria se eu fosse gay ou não. O Luís e o Mike ficaram mais tempo calados, mas acabaram por agradecer o meu exemplo e disseram que também pouco lhes importava o que é que fosse. No caminho para casa, ainda todos juntos, o Mike saiu-se com a seguinte frase:

- Tudo bem, não seriamos amigos se não aceitássemos as opções dos outros, mas acabaram-se os banhos nus no rio Fiona.

Após rir-se na minha cara, deu-me um grande abraço e foi moendo-me o juízo até casa.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

34 – O rato que a montanha pariu

Quando cheguei a casa perto da hora de jantar, o meu pai tinha acabado de sentar-se na sala para contar às mulheres da casa o que se passou na reunião do Concelho Municipal.

- Na realidade não há muito para dizer, sobre o que se passou. - Dizia o meu pai. - Passou-se muito tempo a discutir se as forasteiras deviam participar na reunião ou não. Acabou-se por decidir que não. Foram apresentados os documentos entregues por elas e analisados. Realmente parecem todos legais e autênticos. O Dr. Capuchinho apresentou toda a documentação relativa à doação desta herdade por parte do Senhor Teotónio e discutiu-se muito sobre os trâmites legais a que estamos sujeitos, se a neta reclamar a propriedade. Por fim foi decidido pedir-lhe que façamos a comprovação genética da sua filiação. Como é neta não se poderá ter a certeza absoluta, mas teremos uma indicação forte.

- Só isso? – perguntou a minha mãe que falava por todos nós.

- Eu bem disse que não havia muito para dizer. Já sabíamos o que os documentos diziam, só constatamos que eram verdadeiros. Enquanto se espera pelo teste vamos pensando numa forma de resolver o problema.

- Acho que foi muito inteligente da parte do Dr. Capuchinho dar hospedagem às forasteiras. – disse eu perante a tendência do meu pai para se repetir.

- Como é que sabes isso? – perguntou-me ele.

- Foi o próprio Dr. Capuchinho que me disse. Não sei se sabes, mas a neta mais nova dele é minha amiga. Hoje fomos lá à casa dela e encontrámo-lo a sair da casa.
Todos na sala olharam para mim de uma forma estranha. As minhas irmãs tentando disfarçar a vontade de rir. Às vezes tenho a sensação de ser um desconhecido para a minha própria família. Ou então sou eu que não os conheço.

Apesar de tudo a sensação que ficou foi que a montanha pariu um rato. E o Concelho resolverá tudo como sempre.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

33 – O que acabrunha o Luís

Quando o Dr. Capuchinho desapareceu no fim da rua a Joana chamou-nos para dentro. Durante um bom bocado estivemos a conversar sobre o meu duelo verbal com o avô dela. O pai deu-me os parabéns pela minha coragem e capacidade argumentativa, embora tivesse sido mais sensato não o ter enfrentado. Mas as últimas palavras do Dr. Capuchinho podiam indicar que eu o tinha conquistado. Depois falou-se do que se passou na Delegacia, mas nada de novo surgiu e o pai da Joana tinha que ir à reunião do Concelho. Ficámos indecisos sobre o que fazer, mas como estava um bom dia resolvemos ir para o nosso local preferido – o Hide Park.

Acompanhámos o Dr. Filipe Capuchinho até ao Point. Pelo caminho íamos dizendo que a cidade estava toda à nossa disposição. Na Main começávamos a ver mais gente, uns dirigindo-se à reunião e outros na esperança de assistir a ela.

No Hide Park não vimos ninguém o tempo todo. Também não sentimos a falta de companhia. Sentámo-nos ao sol numa pequena elevação relvada e conversámos. O Mike contou a sua aventura com a cheerleader lourinha, apesar de ele querer dar a imagem de ter conseguido tudo dela, a Vanessa acabou por conseguir fazê-lo confessar que os dois passaram o tempo todo na discoteca mais próxima fora da Silveira, para lá do Sabugal do Sado. Depois trouxe-a a casa e não passaram dos tímidos beijos. No entanto ele disse que ela já estava no papo.

Eu e a Joana contámos a nossa manhã. Muita admiração demonstraram por eu ter ido à missa. Não me dei ao trabalho de explicar, não estava para aí virado. Nem do poema na parede da loja do meu pai falei, a bem da verdade nem me lembrei.

O Luís foi o que menos falou. Foi a custo que arrancámos dele o que o acabrunhava. Sem mais nem menos a namorada acabara com o namoro. Sem mais nem menos não existe, fizemos nós ver ao Luís. E ele pela primeira vez mostrou-se verdadeiramente descontente com facto de viver nesta cidade. A causa do rompimento do namoro deve-se segundo ele à existência secreta da cidade Silveira. Sabugal é de certa forma cúmplice da nossa clandestinidade, mas até agora não tem havido problemas nos relacionamentos entre naturais das duas localidades.

A rapariga dizia achar estranho o Luís nunca levá-la à sua cidade. De manter um segredo muito grande em relação às suas origens. Nós concordámos com ela. O secretismo era desnecessário. O Luís olhou-nos surpreendido e magoado. A Vanessa disse:

- Luís, a rapariga ao fim de quatro anos de namoro deve ter-se cansado de tanto segredo. E também o que vos unia pode ter acabado. Vocês eram muito novos quando começaram e ainda são. Se calhar a paixão acabou e nada ficou para vocês continuarem juntos.

- Vai na volta ela conheceu outro gajo que vivesse mais perto. – disse o Mike.
O Luís manteve-se calado. E a Joana pôs um ponto final no assunto dizendo que pela reacção ao rompimento o Luís também já não estava apaixonado, simplesmente era cómoda aquela relação. O Luís acabou por lhe dar razão ao sorrir timidamente a esta opinião. Todos caímos em cima dele, dando-lhe caldos e carolos.

Depois ficámos ali dizendo baboseiras até perto do pôr-do-sol. Foi uma tarde muito bem passada ao ar livre.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

32 – O preço da audácia

Chegados à casa da Joana e a Vanessa foi tocar à porta. Não chegou a fazê-lo pois a porta abriu-se e estava de saída o Dr. Capuchinho, pai. Pareceu surpreendido por ver, em primeiro lugar, a Vanessa à sua frente e depois por nos ver no passeio especados a olhar para ele. A surpresa não o impediu de descer as escadas e sair para o passeio como se ninguém estivesse ali.

Veio ao meu pensamento que o avô da Joana pudesse pensar que nós seriamos ali da zona, que não gostasse que a neta se desse com párias. Para evitar esse tipo de pensamentos e porque tinha essa curiosidade, disse enchendo-me de coragem e de pouca-vergonha:

- Dr. Capuchinho, boa tarde. O senhor sabe me dizer onde é que ficou hospedada a minha prima Clarissa, neta do senhor Teotónio?

Realmente fui muito audaz. O Dr. Capuchinho é extremamente respeitado na cidade, ninguém lhe fala levianamente, só por falar. No fundo todos tremem de medo. Ele olhou para mim de cima a baixo e fixou-se no meu olhar. Consegui aguentá-lo. Como temia que ele não me reconhecesse, disse:

- Eu sou o filho do Ventura, gerente do Grand Groceries.

- Eu sei quem o senhor é. – Mau, ele tratou-me por senhor. – Estou surpreendido com a sua atitude, senhor?

- B... Alberto.

- Senhor Alberto. Deve ser a única pessoa nesta cidade não preocupada com o que está a se passar. Pensei que o senhor fosse mais maduro do que demonstra.

- Mas Dr. Capuchinho, o que o leva a dizer isso?

- O senhor estar a fazer chiste da situação. Parece que está muito feliz por ver a cidade em perigo de deixar de existir.

- Mas o senhor acha que só porque apareceu uma neta do Senhor Teotónio que a cidade vai desaparecer assim sem mais nada? Não me parece.

- Estou surpreendido. O senhor Alberto tem a inteligência tão superior aos líderes da cidade que viu logo que a cidade não corre perigo. Se calhar devia convidá-lo para a reunião do Concelho Municipal, para nos iluminar com as suas soluções mágicas.

- O senhor merece todo o meu respeito, pelo seu passado, pelo muito que deu à cidade, mas se pensarmos um pouco mais acima da nossa realidade, somos forçados a reconhecer que tudo o que a cidade teme perder se baseia numa enorme ilegalidade. A nível nacional nós somos ocupantes ilegais de terrenos privados.

- O senhor Teotónio legou-nos as suas propriedades. Não venha com conversas jurídicas para mim, pois nesta cidade eu devo ser quem mais entende disso.

- Desculpe interrompê-lo, mas se o Senhor Teotónio legou aos ocupantes das suas terras a propriedade delas não temos nada a temer destas forasteiras. – O Dr. Capuchinho ficou em silêncio perscrutando-me. – O facto de estar preocupado com o nosso futuro, não me impede de ficar curioso sobre um parente que desconhecia ter. E mais, a cidade até hoje foi muito bem gerida, de certeza que ao longo a sua história surgiram problemas tão ou mais complicados que este e ainda cá continuamos. A minha inteligência não vai fazer falta. Eu só falei consigo para que o senhor não pensasse que a sua neta se dava com gente qualquer, caso o senhor não nos reconhecesse. Pois deve ser para o senhor uma provação ter o seu filho e netas a viver nesta parte da cidade.

- O senhor está a pôr na minha pessoa preconceitos seus.

- Por acaso estarei errado?

Ficámos em silêncio uns segundos. Eu devia estar vermelhíssimo. O Mike, o Luís e a Vanessa estavam de boca aberta. A Joana estava à porta também corada e de boca aberta. O Dr. olhou em volta, os outros procuraram disfarçar o espanto.

- O senhor quer me convencer que o seu grupo é uma boa companhia para a minha neta?

- Sim. Senti a necessidade de o descansar. Afinal deve ser uma ocasião muito especial e de uma importância ainda maior o dia em que vem para estas bandas. Se calhar há muito que não vinha aqui. Logo quando ia a sair vêm um grupo de jovens à porta das suas netas, antes que pudesse fazer juízos apressados sobre nós decidi descansá-lo subtilmente. Falhei redondamente. Afinal não sou assim tão inteligente.

O Dr. Capuchinho sorriu, quase rindo, e começou a caminhar deixando-nos abismados. Meia dúzia de passos à frente virou-se e disse-me:

- Senhor Beto, estou feliz por a minha neta Joana ter amigos como os senhores. A sua... suposta... prima Clarissa está hospedada em minha casa. Acabei de convidar a família do meu filho a frequentar mais a minha casa afim de dar uma hospedagem agradável às duas senhoras. Sendo eu sozinho não posso dar a atenção necessária que ela merecem, estado na minha casa. E por acrescento os senhores estão convidados a fazerem as honras da cidade à jovem Clarissa.