sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

31 – Do silêncio à outra face da medalha da cidade

O nosso almoço foi bastante tristonho, pensativo e compenetrado. O meu pai quis sair logo após a refeição em direcção da Câmara para a reunião do Concelho Municipal. Eu fui ter com o Mike e fomos à procura dos restantes Espinhos. A Vanessa continuava de mau humor e pareceu ficar pior quando aparecemos, mas veio à mesma connosco. Passámos pela casa do Luís, que estava a acabar de comer e depois fomos à casa da Joana.

A principal característica estranha deste início de tarde foi o silêncio. Silveira estava transformada numa cidade deserta, fantasma. Normalmente via-se sempre alguém circulando, nem que fosse na Main, mas nada, ninguém passeava, passava apressado ou esperava por alguém. O Food and Liquors e o Young’s estavam fechados. As igrejas também. O silêncio estendia-se à natureza, nem vento soprava, nem pássaros ou moscas ouviam-se. Nada. O que faz a aparição de duas forasteiras, sobretudo se uma delas for neta do fundador da cidade. Fundador e dono.

A casa da Joana ficava por cima do consultório do pai. E se os restantes Espinhos moravam relativamente perto na zona poente da cidade, ela ficava perto do Liceu no fim da cidade a sul. O fim da cidade caracteriza-se pelo descuidado na estética urbanística. Há mais casas pobres, lembrando barracas, com hortas e pocilgas, galinheiros e coelheiras. A casa da Joana é a melhor do quarteirão e a família é muito respeitada na zona. Quem vive ali ou são idosos analfabetos ou pobres que não se adaptaram ao Silveira’s way of life. O pai da Joana funciona para aquela comunidade como um porta-voz seu na sociedade silveirense, é o seu médico, líder e protector. A mãe da Joana dá explicações de graça às crianças vizinhas. A Joana e a irmã, mesmo que a contragosto, são um modelo e exemplo para as raparigas e jovens.

Se é verdade que a sociedade juvenil silveirense se divide nas facções “bem” e “aspirante”, se é verdade que nós os Espinhos somos como que outsiders a essa lógica, é também verdade que os jovens da zona sul da cidade são os párias da nossa sociedade. Falo em sociedade juvenil silveirense porque é na nossa idade que estas culturas são mais evidentes, mas nos adultos isso também se vê. Há convenções sociais a respeitar. A nossa sociedade está escalonada não tanto numa coisa tão rígida como casta, mas classes ou grupos sociais. Embora não haja propriamente violência na cidade, os problemas quando surgem têm como vector a população da zona sul: ou originam o conflito ou são alvo de alguma provocação. A Joana e a irmã só pertenciam ao grupo “bem” por inerência familiar, pois por origem bairrista seriam párias.

Mesmo nesta zona o silêncio imperava.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

30 – No silêncio uma breve troca de palavras

O silêncio manteve-se um bom bocado. Ninguém parecia querer falar, mas eu estava muito curioso sobre que documentos elas tinham apresentado. E quebrei o silêncio para dizer isso. O meu pai contou que eram cartas entre o Teotónio e avó da Clarissa, uma escritura de doação de uma casa em Lisboa e documentos de inicio de uma conta bancária no nome dessa avó pelo próprio punho do Sr. Teotónio. Agora o Concelho iria de certeza avaliar se a caligrafia dos documentos apresentados era mesmo do Sr. Teotónio.

- Que implicações é que isto pode ter nas nossas vidas? – perguntou a Isabel.

- Neste momento, todas e nenhumas. – respondeu o meu pai. – O Dr. Capuchinho perguntou várias vezes o que é que elas pretendiam ao aparecerem desta forma, mas elas nada disseram. Simplesmente vieram apresentar-se e dizer que o Sr. Teotónio tem uma herdeira.

- Se ela é herdeira, então tudo isto é dela. A cidade toda é dela. – disse o Sr. Gustavo. – Ela se quiser, pode pôr-nos todos fora daqui.

O meu pai não disse nada. Ninguém disse. O silêncio instalou-se outra vez.
Desta situação fui tirando várias ideias, a ser verdade o que elas afirmavam:

1 – A Clarissa é minha prima em terceiro grau.

2 – A Clarissa é dona dos terrenos onde a cidade está instalada e de tudo em volta.

3 – Se ela é dona dos terrenos, também é dona dos edifícios – todos.

4 – Se ela veio se apresentar como herdeira, deve querer ser reconhecida como tal.

5 – É fácil de perceber que veio tomar posse do que é seu.

6 – Porquê que não pôs um processo em tribunal reclamando a filiação e consequente direito à herança? Legalmente já não poderá fazê-lo?

7 – Pelo que o meu pai disse, ela ficou com uma bela herança para além da Silveira. O Sr. Teotónio deixou-lhe uma boa casa em Lisboa e uma conta bancária à altura muito boa, agora então muito melhor se não foi delapidada ao longo dos tempos.

O silêncio instalou-se definitivamente e ao fim de, talvez, um quarto de hora a família do Mike saiu dizendo um até logo sonoro, mas carregado de silêncio.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

29 – O que se passou lá dentro

Assim que o ajuntamento começou a dispersar, o meu pai, visivelmente incomodado, furou por onde pode e encaminhou-se para casa. É claro que fui com ele. O pai da Joana seguia pelo mesmo caminho e ela veio ter connosco, juntamente com o Mike e a Vanessa. Tentei saber o que se passara na Delegacia, mas os dois disseram que era melhor falar em casa. Eles pareceram surpreendidos por nos verem os quatro juntos. A existência dos Espinhos não foi propriamente publicitada. Mais tarde soube que o pai da Joana lhe felicitou por ela ter mudado para companhias não tão sedentas de poder ou prestígio. Um grande elogio.

Não demorou muito para que os dois membros do Concelho Municipal seguissem caminhos diferentes e nós também. O Mike veio comigo e a Vanessa foi com a Joana. Por causa de tudo isto o meu pai só iria ver a inscrição na parede na segunda-feira.

Em casa as mulheres da família esperavam-nos ansiosas. O Mike entrou como se fosse da casa e abancou-se na sala. A reunião familiar ia começar. O meu pai olhou fixamente para o Mike e eu pela primeira vez pensei que ia pedir-lhe para se retirar. Efectivamente pediu-lhe para sair, mas para voltar logo em seguida com a família dele. A reunião seria de duas famílias. As duas deram-se sempre muito bem. A minha mãe aproveitou para ir fazer qualquer coisa à cozinha. A Bia quis saber por onde eu andara. Lá contei que tinha ido à missa. Espanto geral. A minha mãe e as minhas irmãs costumam ir à missa vespertina, mas já há muito que tinham desistido de me arrastar. Antes que me obrigassem a explicar o porquê de tão inusitada acção o Mike chegou com a mãe e o pai dele. Os restantes irmãos não vieram.

O meu pai começou:

- Todos vocês já sabem que apareceram duas forasteiras na cidade afirmando que uma delas é neta do Senhor Teotónio. Foi isso que foi dito ao Xerife Torcato na presença do Beto e da Joana Capuchinho. O Xerife levou as forasteira para a sua delegacia e lá reuniu-se o Concelho Municipal. Para meu espanto, o Dr. Capuchinho tomou as rédeas da conversa com a Dona Bernarda, a tia da suposta neta do Sr. Teotónio. Ela apresentou-se e apresentou a sobrinha. Contou-nos que ela era a tutora legal da sobrinha há um ano e meio, por morte da mãe da jovem, sua cunhada. Só recentemente é que a tia tomou conhecimento do passado da mãe da cunhada e da história com o Sr. Teotónio. Ela apresentou uma certidão de nascimento em que o nome do Sr. Teotónio aparece claramente como pai de uma menina, cujo nome aparece na certidão de nascimento da sobrinha. Ela depois contou que sendo tutora da sobrinha esteve a fazer uma arrumação e inventariação aos papéis da irmã, tendo encontrado diversos documentos e cartas que ligam a sobrinha ao Sr. Teotónio. Ela entregou cópias autenticadas por notário ao Concelho. Segundo a opinião dela, não há a menor dúvida sobre o parentesco entre os dois. O Concelho vai reunir-se de emergência de tarde para analisar e deliberar sobre este caso. Como a casa do Sr. Teotónio está em obras, o Dr. Capuchinho ofereceu a sua casa para hospedá-las. E foi isto que aconteceu na Delegacia.

- O amigo Ventura acha que esta história é verdadeira? Que a miúda é mesmo neta do velho Teotónio? – perguntou o Sr. Gustavo pai do Mike.

O meu pai, num encolher de ombros, disse que tudo indicava que sim. O silêncio instalou-se pesado na sala.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

28 - Legenda

O Mayor falou. O que disse é que... me... parece... que não esclareceu lá muito. Tomei a liberdade de não cortar o discurso com as minhas observações, mas numerá-lo, e por isso aqui vai a legenda:

1 – Aqui o discurso começa a descambar. Vê-se logo que é um político a falar, um político que ou não tem nada para dizer ou tem e não quer. É precisa uma certa arte para começar um discurso em que dá a ideia que nos vai dizer alguma coisa e depois... depois sobe à estratosfera do delírio.

2 – Aqui começa o bloco retórico por mim intitulado “Todo”. Anteriormente descobrira que o nosso Mayor usava esta técnica. Mais ou menos a meio do discurso começava várias frases com a palavra “todo”, normalmente seguida da palavra “Silveirense”. O bloco “Todo” tem por objectivo agregar o público num objectivo comum que é o orgulho por ser Silveirense. Desta vez surgiu uma inovação: depois de dois “todo” no singular, dirigindo-se para uma população genérica quase abstracta, lança uma frase sem o “todo” mas fazendo ver que Silveira éramos nós os ouvintes e em seguida retoma com toda a pujança o “todo” agora no plural englobando-nos no discurso, incluindo o orador. E assim arrebatou a audiência.

3 – Aqui começa o derradeiro e mais desesperado apelo ao orgulho Silveirense. O Mayor já não fala sozinho, nem de si próprio em especial, ele fala por nós. Não só as pessoas estavam conquistadas, como também os próprios edifícios, pedras da calçada (se existissem, aqui é tudo no mais puro cimento estilo americano). O Mayor, o nosso Sumo Sacredote, na sua voz pungente exprimia todo o sentimento de gratidão e amor que brotava do mais profundo recanto da alma de cada um ali presente.

4 – Neste momento tradicional dos vivas, a audiência não se conteve e explodiu em vivas, acenos com os braços, largos sorrisos, vozes embargadas pela emoção, muitas lágrimas mal disfarçadas. Se as pedras da calçada, mais uma vez, se elas tivessem bocas e braços, também dariam vivas. Quase que estou a dar vivas agora mesmo. Passemos à última nota.

5 – Com o povo em delírio, quiçá em transe, e incontrolavelmente controlado, o Mayor despede-se sem dizer uma só palavra sobre as forasteiras. O homem é mesmo bom nisto. Falou e não disse nada. Falou e conseguiu que aquela pequena multidão fosse para casa feliz e contente na total ignorância. Viva o Mayor! Viva!

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

27 – E o Mayor falou

Eu estava surpreendido. A Joana pareceu-me embaraçada. O Mike estava divertido. E a Vanessa avisou-nos que se notavam movimentações na Delegacia. Por isso não houve tempo para falarmos sobre o que aconteceu nem sobre o que eu tinha descoberto. As pessoas ajuntaram-se junto à porta. Já lá estava uma equipa da rádio e da televisão, eram os mesmos, na rádio passaria o som da televisão.

Quem vinha à frente era o Mayor. Como um bom político vinha a sorrir como se tivesse acabado de ver uma comédia teatral. Mas o mais certo era essa comédia estar preste a começar, ali mesmo à saída da Delegacia. Avançou o suficiente para deixar sair grande parte do Concelho e preparou-se para fazer uma comunicação. Logo atrás do lado direito estava o Dr. Capuchinho circunspecto. O meu pai via-se lá para trás e parecia empenhado em conseguir sair dali sem esperar pelo discurso do Mayor. O pai da Joana teve mais sorte e antes do Mayor falar já se dirigia para casa. Olhou para nós e fez sinal para a filha segui-lo. Assim o fez. Tive pena do meu pai. Houve algumas fotografias. Sim, os jornalistas dos jornais e seus fotógrafos conseguiram chegar a tempo. Silêncio, o Mayor vai falar:

- Amigos Silveirenses. Como é do vosso conhecimento, e se não fosse, não estaríeis aqui, (1) o que me alegra porque demonstra o quão elevada está a nossa democracia, visto terem acorrido em tão grande número e tão solicitamente, mostra igualmente o interesse que vocês têm pelo bom funcionamento das instituições e da nossa sociedade em geral. (2) Todo o Silveirense ama esta terra. Todo o Silveirense só existe em função da sua terra que alimenta com o suor e sangue do seu trabalho. Silveira não é uma terra, são vocês, vocês mulheres e homens, meu irmãos, sangue do meu sangue. Todos nós partilhamos um sonho. Todos nós, já somos esse sonho. Todos nós, queremos concretizar esse sonho nos nossos filhos e netos e filhos deles! (3) Como soldados na mais encarniçada batalha nós damos a nossa vida de bom grado, oferecemo-la à nossa gloriosa pátria, Silveira, este chão sagrado que tenho a honra de servir e beijo reverentemente com lágrimas nos olhos e o coração em êxtase. Sou teu filho Silveira, queres que marche para tua glória contra as baionetas assassinas e opressoras, pois vou! Vou! Vou, sem hesitar, sem olhar para trás, pois tu mereces tudo, tudo. E mais eu fosse, e mais eu tivesse, e mais eu te daria! Silveira! (4) Viva Silveira! Viva Silveira! Grito até ficar rouco, viva Silveira! (5) E de coração exultante levemos para casa esta certeza eterna que Silveira será sempre nossa, como dela seremos sempre nós. Obrigado e um bom domingo. Viva Silveira Amada. Viva!

E o Mayor falou.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

26 - Numa floresta de pensamentos me embrenhei e surpreendi-me

Eu bem que gostaria de ter estado dentro da Delegacia naquele momento. Eu e toda a cidade. Como é que toda aquela gente se acomodou nas sala pequenas da Delegacia e Prisão silveirenses? O tribunal reúne-se no Salão Nobre da Câmara, aí sim haveria espaço.

O tempo foi passando e a hora de almoço estava a bater à porta. Apesar da imensa curiosidade, as donas de casa tiveram que ir tratar do almoço. O número de homens e de jovens aumentou. O Luís ficou impaciente e partiu. A Vanessa continuava de mau humor e parecia trocar mensagens telepáticas com a Joana, pois olhavam-se de vez em quando. O Mike, um pouco aborrecido com a falta de novidades, tecia considerações sobre as poucas raparigas que por ali estavam, acabando por me contar pormenorizadamente as suas tentativas para aquecer a cheerleader. Fiquei com a impressão de duas coisas: que era o único verdadeiramente interessado no que se estava a passar; e que se passava algo que me escapava entre os Espinhos. Nunca me tinha sentido tão desunido em relação a eles como naquele momento. A Joana estava a se tornar num mistério. A bem da verdade a Vanessa também.

A espera começava a trazer ao de cima a minha noite sem dormir. Fui o primeiro a sentar-me no passeio, nem me importei se estava ao sol ou não. Os Espinhos fizeram o mesmo. O Mike não se calava com risadas baixas e comentários jocosos. Aos poucos o meu cérebro foi fechando as portas de entrada, excepto as necessárias para a vigília. Fui embrenhando-me em pensamentos como numa floresta que me levou ao poema escrito na parede da loja do meu pai.

Não precisava de olhar para lá, mas sentia-o. Estranhamente, ou não, sentia o desejo de tocar-lhe, contemplá-lo. Se não havia novidades das forasteiras, o meu interesse voltava-se para o poema. O cansaço impedia-me de fazer perguntas, mas sentia-me como alvo dele, que alguém escrevera-o pensando em mim, para eu ler, para eu pensa-lo.

Afinal o cérebro estava mesmo era a fechar todas as portas. Apoiei a cabeça nos braços e no joelhos. Os meus pensamentos começaram a ficar confusos e o corpo a ficar leve. Ia partir de viagem. Ouvi a minha voz interior a dizer: meu amor, meu amado, estou só, sozinha, ignota, se soubesses como sou devota, se soubesses como gosto de estar ao teu lado... Estaria eu de olhos abertos, ou já fechados? Ecoava no espaço “estar ao teu lado” “sou devota”. Ecoava. “Quem passa não sabe o quanto meu coração bate por ti. Alta vai a noite, corro antes que a festa acabe. Escrevo só para dizer: gostei de te ver ali”. coração. Coração. Devota. Estar ao meu lado.

Devo ter assustado os Espinhos. Abri os olhos e os braços como que para me segurar. Sentia-me a cair, precisava de me segurar. Acertei no Mike, que pareceu-me estar ainda a falar para mim, e na Joana. O Mike reagiu imediatamente empurrando-me e virei-me para o lado da Joana. Ela quase que caiu para trás e eu ia caindo-lhe em cima. Olhei-a nos olhos. E vi. Devota, ao meu lado, estou só, sozinha, ignota, gostei de te ver ali. Fiquei certo que a Joana era a autora dos poemas para mim.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

25 – Entra em cena o venerável Dr. Capuchinho

Não demorou muito para chegar o avô da Joana, dois minutos depois seguido pelo Mayor e restante Concelho Municipal. O Dr. Capuchinho dos pioneiros é um único sobrevivente e pelo aspecto da mesma fibra do venerável Teotónio. Apesar de não exercer nenhum cargo municipal, continua activo ora no The Workers Licor and Food ora no seu escritório, num primeiro andar a meio caminho entre o Hospital e o Groceries. Na minha opinião, se em Silveira existisse um senado ele seria o decano. Mais, estou convencido que grande parte das decisões políticas e administrativas do Mayor passam pela aprovação do Dr. Capuchinho. É uma desconfiança cá minha.

Se o aspecto do Teotónio não desmentia as suas origens rurais, olhando para o Dr. Capuchinho o mesmo acontecia, mas no sentido de estarmos perante um senhor como já não se vê. Alto, de mais ou menos sete pés, sempre aprumado num dos seus fatos de fino corte, barba branca à patriarca, chapéu preto com fita de cetim, bengala, de que não necessita realmente, de marfim ricamente trabalhado na pega, olhar penetrante, poucos sorrisos, mas muito cavalheirismo. A Joana conta que o avô é bastante afectuoso para com ela, não tanto para com a irmã, e que não consegue disfarçar uma certa tristeza por não ter um neto que continuasse com o nome dos Capuchinhos.

Devo confessar que só depois do início dos Espinhos é que me apercebi que o Dr. Capuchinho tinha um filho e netas. Sempre o vira, tal como o venerável Teotónio, sem descendentes directos, totalmente dedicado à cidade. Os dois, na minha imaginação e forma de os ver, representavam quase uma forma de sacerdócio celibatário. Homens de fibra moral, totalmente empenhados no bem-estar dos outros, que sacrificavam todas as suas ambições pela missão que abraçavam. Mesmo agora olhando para ele tenho dificuldades em pensar que a Joana é sua neta. A sua presença é de tal maneira magnética que somos compelidos a ouvi-lo, respeitá-lo, obedecer-lhe e venerá-lo. A minha desconfiança de que os cordelinhos da Silveira estão sempre entre os dedos do Dr. Capuchinho deve vir da constatação deste poder que ele tem.

O Dr. Capuchinho chegou à porta da Prisão vindo do lado da Câmara, a sua casa situa-se por trás. Abrandou o seu passo firme e apressado para cumprimentar os presentes. Fez uma pequena inclinação com a cabeça quando tirou o chapéu e respondeu a uma pergunta sobre se era verdade que surgira uma filha do velho Teotónio, dizendo:

- Vamos ver, vamos ver. Não se aflijam que vou ver o que se passa.

Logo depois entrou cumprimentando o Ajudante do Xerife que estava zelando para que ninguém supérfluo ao que se passava lá dentro entrasse.

E a manhã instalou-se.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

24 – Elucubrações ligeiramente fora da multidão

E assim foi. Em menos de meia hora a multidão em frente à prisão duplicara. Os Espinhos juntaram-se no momento em que o meu pai e o pai da Joana conseguiram entrar na prisão. A bem da verdade chegaram primeiro do que o próprio Mayor e o restante Concelho. O Mike vinha ensonado dizendo que levaram muito tempo a aquecer aquela cheerleader friorenta. A Vanessa vinha de mau humor. E o Luís simplesmente aborrecido porque tinha que ir visitar a namorada, discretamente, mas a curiosidade era maior.

Nós pusemo-nos um pouco à parte, para podermos conversar mais à vontade. Alguns elementos das nossas famílias estavam misturados na multidão e espalhavam a notícia desta neta que ameaçava o nosso modo de vida, Silveira’s way of live.

Entre nós comentávamos o que se conhecia da história do senhor Teotónio. Até àquele momento estávamos convencidos, tal como toda a cidade, de que ele não deixara herdeiros naturais. A sua fortuna e propriedades tinham sido doadas ao Concelho Municipal na forma de uma fundação.

Teotónio vivera o suficiente para ver a cidade pronta. Pareceu-nos altamente improvável que tivesse descendentes, se vivera quase sempre na cidade. Desde que regressara a Portugal até à sua morte passaram quase trinta anos. A Joana lembrou que ele tinha saídas regulares da cidade.

- Como é que sabes disso? – Perguntou a Vanessa.

- Não te esqueças que o meu avô era o advogado pessoal do Teotónio. As histórias que circulam na minha família nem toda a gente as sabe. Mas acho que isto até era do conhecimento geral. Ele tinha que ir ao banco, contactar com fornecedores e empreiteiros. Não é estranho que saísse muitas vezes, tal como o meu avô.

- E então era possível que ele tivesse uma mulher fora da Silveira? – Perguntou o Luís.

- Sim, tal como tu tens. – Respondeu a Joana. – Não me espanta que tivesse. Das fotografias que temos dele, mesmo já com idade avançada, continuava com um certo charme.

- Para mais sabendo-se da fortuna que possuía. – Conclui eu perante o ar de espanto desaprovador dos restantes Espinhos. – Se calhar disse alguma mentira. Não me digam que era impossível ele atrair alguma golpista?

Todos concordaram comigo resignados. Todos sabíamos que o velho Teotónio era um homem cheio de energia, empreendedor, dinâmico e que só parou quando morreu, mesmo assim deu-lhe imensa luta. Seria de estranhar que, após o longo luto pela Fiona, ele voltasse a querer casar? O estranho é não ter trazido para a Silveira essa mulher. Ninguém ficaria chocado se ele casasse de novo. Ou ficaria?

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

23 – O riso da Joana

Enquanto a Joana se ria agarrada a mim até ao ponto de lhe doer a barriga, em frente à prisão começava a juntar-se uma pequena multidão. Não é nada normal aparecerem forasteiros na cidade, dada a nossa situação peculiar é normal que as pessoas sintam, por um lado, curiosidade, mas por outro apreensão quando ao desfecho da visita.

Tentei prosseguir o nosso caminho, embora não soubesse realmente onde queria ir. Na verdade tinha sido arrastado pela Joana. Ela ia repetindo caoticamente algumas das frases e situações que achara cómicas no encontro com as forasteiras. Não consegui avançar mais do que a loja do meu pai, mesmo em frente ao poema. Sim o poema, que com isto tudo tinha ficado esquecido. No entanto o riso da Joana era tão genuíno e forte que acabei contagiado e rimo-nos à brava os dois agarrados ora às nossas barrigas ora um ao outro.

Reparei mais uma vez no poema. Tive um impulso de contar as minhas suspeitas, mas no estado em que estava a Joana certamente iria continuar a chorar a rir. Não estava preparado para ser gozado em algo que me tocara fundo. Se não tivesse lido o poema, não estaria ali cheio de lágrimas e com dores no maxilar. A minha vontade de rir desapareceu. A Joana levou algum tempo a recuperar e a reparar que eu deixara de rir.

- Parece que isto está a ser uma moda. – Disse eu quando ela se pôs a ler o poema. Não me pareceu particularmente surpreendida, nem interessada, nem indignada. Encolheu os ombros e disse:

- Acho que deves avisar o teu pai e eu o meu. Já agora os Espinhos também.

- Por causa do poema? – perguntei espantado.

- Se achares importante... o teu pai não faz parte do Concelho Municipal? O meu como tem um consultório faz. – Ela deve ter percebido que eu não estava a entender – Por causa da priminha que está ali na delegacia? Dah!

- Ah, pois claro. Mas não achas que o Xerife já não telefonou para o Mayor?

- Mas duvido que tenha telefonado para os nossos pais.

- Ok, então eu vou para casa e aviso o Mike e a Vanessa também.

- Eu passo pela casa do Luís. De certeza que em breve estaremos todos juntos em frente à Câmara.