terça-feira, 30 de novembro de 2010

22 – Jogos florais em frente à Câmara

O velho Teotónio da Silva deixou uma herdeira.

Talvez por ter batido com a cabeça umas horas antes tive uma reacção estranha, mesmo para os meus critérios de indiferente:

- Então somos primos. Eu sou o Beto, prazer. – Estendi a mão para cumprimentá-la.

- Prazer em conhecê-lo Beto. – Ela tem um toque de mão suave, estremeci por dentro. Se calhar corei, mas a outra não deixou a coisa continuar.

- Oh, que felicidade, é comovente o reencontro familiar, senhor Beto Prazer. Vejo que tem reacções rápidas, mal conheceu a herdeira, já está a tentar ganhar pontos. Vamos Clarissa, temos que descansar. A menina bem que podia ter herdado uma coisa bem mais perto do primeiro mundo.

As duas pegaram nas suas coisas e começaram a andar. A Joana estava quase a rir à gargalhada. O Xerife parecia confuso. Mais uma vez tive o impulso de as seguir. Se percebi bem ela chamou-me oportunista, tinha que desmenti-la.

- E como é a sua graça, senhora? – Estava a ir bem. A sobrinha parou e virou-se obviamente divertida. A tia teve que parar.

- Sim? – Disse ela.

- A senhora, como se chama?

- Não me diga que vai cair no absurdo de dizer que é meu parente.

- Se for parente do Teotónio... mas não é por isso, afinal já apresentou a sua sobrinha. E eu também já me apresentei.

- O fedelho é impertinente. – Fez uma pausa para mudar para uma expressão de simpatia. – Eu chamo-me Bernarda Augusta Pascoaes Meneses de Botelho Castro. Pode me fazer a gentileza de indicar a casa do senhor Teotónio da Silva?

- Prazer em conhecê-la. A casa fica por trás da Câmara. Eu levo-as lá. – Acho que exagerei no polimento vocal. A Joana estava quase a chorar de tanto se esforçar por não desatar à gargalhada.

- Não – A forma como a Bernarda falou foi quase implorando ou ordenando, não lhe liguei nenhuma. -...é necessário, de certeza que tem mais do que fazer. E afinal a casa fica aqui perto.

- De modo algum, onde estaria a cortesia silveirense se as deixasse ir carregadas e sozinhas. De modo algum. – Estava a estender o braço para aliviar a prima Clarissa da bagagem quando o Xerife me interrompeu.

- Bem vamos acabar com esta palhaçada. As senhoras queiram me acompanhar à delegacia para esclarecermos as coisas. E não é um pedido.

Pronto, a autoridade falou e ordenou. A forasteira mais velha olhou horrorizada e começava a preparar um discurso de indignação, mas a expressão do Xerife Torcato não lhe deixou margem para replicar. É esta a grande qualidade do Xerife: sabe impor a sua vontade sem violência, só com a voz e expressão. As forasteiras juntaram-se a ele como cordeirinhos e lá foram para a delegacia. Pois a esquadra de polícia é chamada delegacia por estes lados.

Ao passar por mim a Clarissa sorriu-me. Fiquei com a impressão de que não estava ali por vontade própria. Talvez não gostasse de estar sob as ordens da bruxa da tia. Tia no pior sentido do termo. A Joana tinha lágrimas a escorrer e a boca fechada com dificuldade, nos cantos notavam-se pequenos tiques sorridentes. Eu consigo controlar-me melhor.

Seguimo-las até à delegacia, cem metros de caminho. Por ali a população começava a juntar-se. Mal entraram no edifico um ajudante do Xerife colocou-se à porta para ninguém entrar. E disse:
- Vão à vossa vida. Não há nada para ver aqui. Se houver alguma coisa que seja do interesse público todos serão informados. Vão para casa. Vá, desmobilizem.

A nossa autoridade tem uns modos muito antiquados, sem dúvida. Algumas pessoas fizeram perguntas: quem eram as forasteiras? Que queriam? Só eu e Joana tínhamos ouvido a notícia bombástica. Fizeram-nos perguntas, mas a Joana puxou por mim dizendo que nada sabíamos. Ela fez bem, podíamos gerar muita confusão. Andámos um bom bocado pela Main. Perto da loja do meu pai ela desmanchou-se a rir:

- Beto Prazer?! Ah ah ah ah.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

21 – As forasteiras

A Joana e eu demos conta ao mesmo tempo da chegada destas duas forasteiras. Pareciam ser mãe e filha, sendo a mais nova aparentemente da nossa idade. Vinham com malas de viagem, por isso: estavam de passagem, certamente perdidas, ou vinham para ficar. Mesmo que desejem ficar temporariamente há um problema, nós não temos hotéis nem pensões. Nunca se pôs a hipótese de recebermos visitas estranhas à terra, afinal somos clandestinos.

- Isto vai ser interessante. – Disse ao meu lado a Joana. E tinha razão. Como não recebemos visitas, as visitas que surgissem seriam um problema para as autoridades silveirenses. Uma coisa era certa, não ia dormir tão cedo.

Em frente da igreja começou a juntar-se um grupo considerável de pessoas. Há sempre alguém muito prestável e só consegui ver um vulto a desaparecer para dentro da cadeia. O edifício tem por razões óbvias a única esquadra de polícia, se não disse antes, digo agora: também temos um xerife e é igualmente eleito como os seus congéneres do outro lado do oceano.

As forasteiras, que vinham bem pesadas, fingiram que nós éramos umas árvores ou estátuas. Iam passar por nós como fariam em qualquer outra cidade onde não conhecem ninguém. A mais nova parecia ligeiramente incomodada. A outra não.

Passaram por nós e confirmou-se o desprezo a nós votado pelas forasteiras. Elas ignoraram os comentários de várias pessoas e seguiram em direcção da Câmara. Ninguém fez menção de ir atrás delas. Não sei o que me deu, mas resolvi segui-las. Terá sido um instinto adormecido de jornalista que acordou? Terás sido curiosidade? A Joana acompanhou-me.

Elas pararam em frente à Câmara contemplando-a. A forasteira mais nova deu conta que nós as seguíamos. Mirou-nos várias vezes. Eu, com uma ousadia desconhecida, resolvi tomá-las por turistas, à falta de mais correcta informação.

- Bom dia, este edifício é a sede da nossa Câmara Municipal. Como podem ver, tem uma arquitectura neo-clássica típica das pequenas cidades dos Estados Unidos da América. – Quem diria que as aulas de Cultura Cívica dariam frutos?

- Eu sei. Sabe onde está quem manda nisto tudo? – Perguntou a forasteira mais velha. Ela causou-me logo uma péssima impressão. Tratou-nos demasiadamente snob.

- Nisto tudo? – Como ela se armou em parva, armai-me em parvo também.

- Sim. Em tudo o que se vê aqui à volta.

- Bem, quem manda nesta terra é... – fiz uma pausa só para irritá-la – o povo desta terra, tal como em todo o país. O povo é soberano.

- Olhe, miudinho, não se arme em engraçadinho comigo. Onde está o presidente da junta disto aqui? Mora aqui dentro?

- Acha que iria viver aqui? – Ia continuar a falar quando apareceu atrás de mim o Xerife Torcato, uma das pessoas em Silveira com melhor emprego.

- Bom dia, minha senhora, menina, – tirou o chapéu e fez uma pequena vénia a cada uma delas, depois perguntou num sorriso no final – em quê que posso ser útil?

- É o senhor que manda nesta terra?

- Senhora, eu somente garanto a ordem. Presumo que procure o nosso autarca. – Há uma certa cautela instintiva para não expormos as nossas idiossincrasias.

- Se assim quiser chamar, sim, eu quero.

- Como representante da autoridade posso perguntar-lhe o que deseja com ele?

- Pensado bem, o senhor pode nos ajudar. Pode nos indicar onde fica a casa do senhor Teotónio da Silva?

- A casa... onde… ele viveu?

- Claro.

- Está fechada. Só a abrimos em ocasiões especiais. O povo daqui não é lá muito de ir a museus.

- A casa do senhor Teotónio é um museu?

- Claro.

- É ao menos casa museu? Mantém os pertences do senhor Teotónio?

- Sim está quase como ele a deixou.

- Óptimo. Leve-nos lá. Fizemos uma viagem muito longa e precisamos descansar.

- Desculpe, julgo não estar a entender bem. A senhora está a querer ir descansar para a casa museu do senhor Teotónio?

- Claro. Já que o líder desta terriola não aparece, venho lhe comunicar que aqui a minha
sobrinha vem reclamar a propriedade de tudo o que se vê em redor.

O Xerife Torcato demonstrou uma total incompreensão, ficou vermelho e a suar. A forasteira mais nova ora mirava-nos, ora mirava as outras pessoas que ela ignorara há pouco, ora mirava os seus sapatos. A mais velha com uma expressão de triunfo disse:

- Aqui a minha sobrinha, Clarissa é neta do venerável Teotónio da Silva.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

20 – Do vazio à presença

Fui dos primeiros a entrar na igreja. Fiquei perto da entrada. Obviamente que podia me ajoelhar. Fiquei absorto nos meus pensamentos desordenados. Procurei não pensar, nem sentir nada. Fixei-me no sacrário, é ali que está Jesus em corpo e espírito. Achei curioso ter tido esta ideia de vir à igreja, esta necessidade. Não estava a sofrer nenhum desgosto. Não tinha nenhuma doença para pedir cura. Também não tinha uma grande alegria para agradecer. Se eu sei que Jesus está ali, porquê que isso não muda a minha vida? Fiquei absorto, esvaziado de pensamentos e emoções. Aos poucos aquela sensação que me levara à igreja foi desaparecendo, fui sentindo-me mais quente e desperto para o que me rodeava. Dei por mim com a Joana ao meu lado, observando-me.

- Bom dia, - murmurou ela, sorrindo – que boa surpresa. O que te aconteceu? - Ela tinha reparado no meu galo.

- Bom dia, - murmurei eu – cai da cama e bati na mesa de cabeceira. – Ela pareceu muito espantada. – Tu costumas vir tão cedo à missa? Deves ter dormido pouco.

- Costumo. Já estou habituada a dormir pouco de sábado para domingo. Vais ficar para a missa?

- Vou. Ainda não dormi, mas estou muito bem aqui e sem sono. Apesar de não costumar vir, espero que não haja problema.

- Claro que não, a casa de Deus está aberta a todos os que queiram entrar. Olha já falta pouco tempo. Tenho que ir lá para a frente, eu sou uma das leitoras. Se quiseres podes ir para lá...

- Olha, prefiro ficar aqui, não te importas?

- Claro que não. Fico muito feliz por teres vindo. Até logo. - Imagino que mais nenhum Espinho venha à missa.

A igreja foi se enchendo. Até já tinha bastante gente quando regressei à consciência do que me rodeava e vi a Joana. Vi poucos jovens e a celebração teve menos cânticos do que aquilo que me lembrava. O coro devia vir mais tarde para a missa das onze. Não senti o tempo passar, mas perto do final o cansaço estava a tomar conta de mim.

Não esperei muito pela Joana no fim. Vinha sorridente, mas ficou apreensiva, achou-me pálido. O meu ar apelou ao seu lado materno, com certeza. Ao sair da igreja senti o fresco do dia e gostei.

- Foi muito bom ter vindo, sabes?

- Rezar faz bem.

- Eu mal me lembro do Pai-nosso. Não rezei.

- Beto, rezar não é recitar orações de cor. Rezar é entrar na intimidade de Deus, deixar que Ele Se faça presente em ti, conversar com Ele aberta e francamente. É, realmente, entrar na intimidade Dele e deixá-Lo entrar na tua como se não houvesse mais nada para além de vocês os dois. Mesmo que não saibas foi isso que eu presenciei há pouco.

Não soube o que lhe dizer. Já tinha assunto para pensar de futuro. À aquela hora, nove e meia, circulava pouca gente pela Main. Olhei para a loja do meu pai, ia comentar com a Joana sobre o novo poema, quando vi entrar na avenida pela New England duas mulheres que não conhecia. Em Silveira toda a gente se conhece, nem que seja de vista, por exemplo nunca falei com a irmã da Joana e mesmo com ela poucas vezes apesar de sermos da mesma turma desde sempre. É muito raro ver forasteiros em Silveira e àquela hora da manhã, num domingo tinham surgido duas.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

19 - Talvez

Por causa da lesão no joelho e do galo na cabeça pouco dormi naquele resto de noite. Lá em casa ninguém acordou devido ao meu salto para o chão. E já se sabe, todos os homens precisam de uma mãezinha para tratar dos seus doidóis. As minhas dores foram tantas que às sete da manhã saí do quarto e fui tratar dos meus ferimentos com gelo e analgésicos. As mães deviam trazer uma funcionalidade de telepatia, assim adivinhavam quando a gente precisa urgentemente delas. Pode-se perguntar porquê que não a chamei? E respondo com todo o gosto: porque um homem não admite a sua necessidade eterna dos cuidados da mãe.

Foi assim que, investido do espírito de guerreiro do cinema que depois de milhentos ferimentos se arrasta até ao próximo combate e vence-o, foi à missa naquele domingo. Ai que dores lancinantes. O Mike nesse dia, mais tarde, disse:

- Beto, a pancada na cabeça foi mesmo forte.

Realmente desde que fizera a Profissão de Fé que não pusera mais os pés na igreja. Nada de extraordinário para um rapaz da minha idade. Só uma minoria é que persevera. Mas naquele dia senti necessidade de ir à igreja. Talvez tenha sido por causa da pancada na cabeça. Talvez tenha sido por me sentir desprotegido. Talvez tenha sentido a fragilidade da vida na pele. Talvez tenha sido por me recordar de uma frase de um padre que disse: “Deus ama-te mesmo sem saberes”. Talvez tenha recordado essa frase por estar convencido que os poemas são dirigidos a mim. Talvez por esse mesmo padre ter dito: “Deus fala contigo de diversas maneiras, na maioria delas sub-repticiamente”. Talvez devido à subconsciente esperança de descobrir na igreja a autora dos poemas. Talvez por não conseguir dormir e nem ter sono e porque o padre da primeira missa ter a fama de ser um excelente soporífico. Talvez por ter visto passar a minha vida toda à frente enquanto punha gelo na cabeça. Talvez por me sentir sozinho. Talvez por me sentir desamparado. Talvez esteja a me repetir.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

18 – Meditações sobre o alvo

Estes versos estavam discretamente escritos na parede da loja do meu pai. Quase que consigo imaginar a pessoa junto à parede escrevendo com uma caneta de feltro. Desta vez não era graffiti, era mesmo uma mensagem discreta. Imagino que tenha sido escrita à altura da vista, pelo menos o primeiro verso. Se assim for, então a pessoa é mais baixa do que eu, talvez tenha uns cinco pés e meio.

Estive um bom bocado a olhar para o poema. Ninguém andava no Point. Cada vez mais me convencia a teoria de ser uma mulher a escrever tanto este com o outro poema. A caligrafia tentava disfarçar a verdadeira caligrafia, usava só maiúsculas. Os ós e os ás deixavam adivinhar uma letra feminina. O primeiro a de “para” e o a de a ”ali” saíram arredondados. Todos os ós e todos os pês eram tipicamente femininos. Apesar de ter escrito com previsível pressa, notei um certo amor no acto de deixar a mensagem. Senti carinho por essa desconhecida que devo conhecer, nem que seja de vista.

É difícil de entender este acto, neste local e neste momento. Se o outro poema estava bem à vista, querendo dizer ao mundo e ao seu amado o quanto amava, escondendo-se é certo no anonimato de uma parede, da segunda vez é diferente. O mais certo é que só meia dúzia de pessoas, claro que mais, irão ver a mensagem. Sobretudo naquela noite. Como é que ela podia saber que o seu amado ia passar a altas horas da noite naquele sítio e, ainda por cima, reparar naqueles seis versos? Ok, devia saber que ele ia passar por ali.

“corro antes que a festa acabe”

Parece óbvio que ela escreveu já relativamente tarde, talvez perto a meia-noite. Parece-me que a essa hora devia haver pouca gente a passar por ali. O final da festa tinha fogo preso como garante de não haver ninguém nessa altura a circular. Quem andou nas ruas da cidade, andou mais cedo ou logo depois do fogo. Uma coisa é certa, o número de destinatários diminuiu drasticamente. O final da festa teve muito menos gente do que duas horas antes. Lembro-me de ter comentado com o Mike que o pessoal estava a pensar ver o fogo pela televisão no quentinho da casa. O fogo preso foi o normal, mais do costumeiro. Pouco depois não se via ninguém no Hide Park, excepto quem pertencia à organização. Era suposto o Mike ter esperado por mim, mas ele teve uma emergência. Disse-me que tinha que aquecer uma cheerleader, a tal lourinha que pretendia conquistar, antes que ela entrasse em hipotermia. Ainda há pessoas altruístas. Os outros já tinham partido.

Então ela deve ter escrito aquilo por altura do fogo. Uma percentagem considerável dos resistentes nem passaria forçosamente por ali, muito menos a pé. Como é que ela teria a certeza, e parece ter, de que o alvo da mensagem seria atingido? Fiz um esforço para recordar a maioria das pessoas que estavam a ver o fogo ou a trabalhar. Poucas pareceram-me cumprir as condições para serem o alvo.

De repente dei um salto na cama que me levou ao chão. Estivera a pensar intensamente até às três e meia da manhã e veio-me entre o sono e a vigília a ideia de que o alvo podia muito bem ser eu. Bati com a cabeça na mesa-de-cabeceira, até vi estrelas, e dei uma joelhada no chão fazendo-me ver galáxias inteiras.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

17 - Festa

Como dos versos não houve desenvolvimento, a minha atenção manteve-se ocupada com as aulas e a rádio. O meu trabalho de assistente de realização consistia em ir buscar discos, textos ou jornais, cafés e atender telefones. Queria mesmo era estar em frente do microfone e a escolher músicas. Mas tenho paciência e vou aprendendo.

Outra tarefa que tenho executado é a pesquisa e compilação de pequena notícias nos jornais nacionais, para serem dadas nos noticiários da rádio. Faço recortes e recolho em pastas por assuntos. O que mais gosto de fazer é compilar notícias ligadas à indústria musical e ao showbiz.
O primeiro trabalho mais ligado à rádio, rádio, foi num sábado duas semanas depois de entrar para a estação. Requisitaram-me para auxiliar uma emissão especial a partir do Hide Park. Houve música ao vivo no Bowl, quermesse pelo parque, a Banda Filarmónica Silveirense tocando no coreto e as cheerleaders dando espectáculo. A festa tinha como motivo o São Martinho e por isso houve também magusto à noite.

Eu ajudei a montar o equipamento, corri de um lado para o outro à procura dos entrevistados, fui buscar cafés, sumos e bolos, puxei cabos, levantei antenas e carreguei papéis. Dois quartos de Silveira estavam presentes na festa. Ou seja, fartei-me de trabalhar de graça para garantir uma emissão que nunca seria ouvida por mim, pois estaria na festa se não estivesse a trabalhar. E qual terá sido o nosso share de audiência? Vai um número? Talvez por alto se possa dizer… um por cento. Uau!

A única coisa boa foi a presença dos Espinhos Narcisos, deram-me uma boa ajuda, companhia e alento. Improvisei com eles entrevistas para um microfone usando num jornal enrolado. Trouxeram-me castanhas assadas e água-pé. Mostrei-lhes os equipamentos para a emissão. E avisava-os quando alguma repórter especial se dirigia para perto deles. Estas repórteres eram estudantes do liceu que pertenciam às cheerleaders, mas que não puderam entrar no espectáculo. Oh, que pena não poder vê-las de perna ao léu, com este fresquinho, as cuequinhas da cor do fato justo, quando saltam, dançam ou simplesmente quando nós nos abaixamos um pouco, e que pena não poder ver-lhes dos decotes e os cabelos genuinamente louros da Fiona’s Hairstyles (patrocinadora principal da equipa de cheerleaders, madames do jet7 silveirenses e do único metrossexual a part-time da terra). Oh, que pena! Mas pude desfrutar da sua indiferença para com a minha pessoa. Ai, as perguntas parvas! Ai, os risinhos histéricos! Ai, a jactância! Duvido que alguma saiba o significado de jactância.

Como já não bastava a tarde toda de trabalho escravo, ainda tive que aguentar a noite. Aquela noite foi a minha estreia no trabalho escravo na televisão. A audiência deve ter subido para dois porcento. Estrondoso. Nesse dia havia futebol na televisão nacional. Tenho que dar valor às cheerleaders pois de noite arrefeceu, caiu umas pingas e elas corajosamente continuavam alegres e frescas. Realmente frescas.

A festa acabou e eu tive que continuar lá, mas não senti frio, até suei bastante. Fui para casa depois da uma da manhã. Atravessei o Point devagar entre a Young e a loja do meu pai. Apesar o trânsito inexistente, atravessei nos sinais e ao passar junto à loja do meu pai vejo escrito a vermelho:

quem passa não sabe
o quanto meu coração bate por ti
alta vai a noite
corro antes que a festa acabe
escrevo só para dizer
gostei de te ver ali




terça-feira, 9 de novembro de 2010

16 – Reacções na espuma da água

Silveira sendo uma cidade tipicamente Americana, não o é no que diz respeito à cultura, mais uma vez a cultura, das grandes cidades. Por isso, por cá nunca houve graffiti nas nossas paredes. E dá para imaginar o espanto, o assombro da população. Na realidade eu devo ter sido um dos primeiros a ver a quadra.

É claro que foi notícia de primeira página dos dois jornais da cidade: Silveira Post e Silveira Times. Tenho uma leve desconfiança, mesmo leve, de que pelo menos o Times internacional não sabe da existência desta sucursal. Bem se vê o caudal informativo que jorra da actualidade silveirense.

Mal o sol nasceu, formou-se um grande ajuntamento de pessoas em frente aos graffiti. Várias opiniões surgiram, na generalidade desfavoráveis. O curioso é que ninguém se importou com o facto de ser, em princípio, uma mulher a escrevê-lo. Pelos vistos existe uma mulher apaixonada mantendo em segredo os seus sentimentos que no entanto sentiu uma necessidade imperiosa de os expor ao mundo. Os Espinhos não se mostraram muito interessados nas minhas conjecturas. O Luís disse:

- Nada te garante que tenha sido uma mulher, pode ter sido uma rapariga, ou simplesmente um gajo que te quis dar cabo da cabeça, ou alguém que quis dar cabo da cabeça a muita gente.

- Ou para agitar as águas paradas desta terra. – disse a Venessa.

Os outros limitaram-se a sorrir e voltaram para os seus livros. Nós estávamos na biblioteca.

Por volta do meio-dia o poema já não estava lá, mas na minha cabeça martelava “estou só sozinha ignota”. O rame-rame da cidade fez esquecer em toda a gente aquele episódio rapidamente.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

15 – RCS e RTS (e como começo um assunto e desenvolvo outro)

meu amor meu amado
estou só sozinha ignota
se soubesses como sou devota
se soubesses como gosto de estar ao teu lado


Estes versos não me saíram mais da cabeça. Tinha acabado o meu primeiro dia de cumprimento do sonho de trabalhar numa rádio, quando a caminho de casa deparei com esta quadra escrita a vermelho numa parede lateral da Câmara.

Debato-me sobre o que primeiro devo falar, se da quadra, se do meu primeiro dia na rádio. Hesito. Bem, como os versos apareceram de início, dou a primazia ao meu sonho.

Desde pequeno que gosto muito de música, sobretudo de ouvi-la, pois tocá-la é impossível. Uma das lacunas de Silveira é não ter nenhuma loja de música. Música, filmes e livros, nada de cultura. Por isso só temos duas formas fáceis de ouvir música: quando alguém toca no coreto ou pela rádio. Como a cultura não é das coisas mais incentivadas na cidade, a rádio demorou a chegar, ou melhor, uma estação de rádio sediada em Silveira.

Uma das razões para que aquela teoria do mundo paralelo não seja verdadeira está nas ondas hertzianas. Afinal em qualquer sítio da cidade consegue-se ouvir todas as estações de rádio que se ouvem em Sabugal. Pode-se dizer que as ondas passam pelo portal, mas parece-me um pouco forçado.

A RCS, Rádio Clube Silveirense, deve ter uns dez anos e emite exclusivamente para a cidade e arredores. Portanto é mais uma coisa ilegal neste sítio. Foi difícil a autorização por parte do Concelho Municipal, essa corja de incultos e retrógrados. Dos cinco pioneiros só um, Manuel Castro, conseguiu ter forças para seguir em frente e criar praticamente sozinho a rádio silveirense. É claro que logo que conseguiu o espaço, as máquinas, a antena e respectivo gerador, e conseguiu pôr no ar música, o Concelho quase que municipalizou a estação. Assenhorou-se de tudo, houve muita discussão, e depois da ameaça por parte do Manuel de partir tudo e deitar abaixo a antena, chegaram a um acordo: o Manuel seria o dono, director e principal gerente, mas a emissora era obrigada a ter espaços para a municipalidade.

Como é que é a rádio em termos de programação? Podia ser melhor. O município estipulou uma percentagem grande de música por eles escolhida. Nas horas nobres os programas são responsabilidade do Concelho, ou seja, das sete da manhã até às dez e das seis da tarde às nove da noite. O resto do tempo é livre. Das sete da tarde às nove a emissão sobrepõe-se à da televisão RTS, Rádio Televisão de Silveira. Começa com uma hora de notícias locais e exteriores. Das oito às nove há um programa ao vivo com passatempos e música. A RTS só existe neste horário durante a semana, ao fim-de-semana emite até à meia-noite.

Mas não é a televisão que me interessa. Há alguns meses surgiu a oportunidade de conseguir entrar para os quadros da rádio. O sucesso da rádio é considerável e eles começaram a precisar de mais colaboradores. Inscrevi-me, após uma espera longa, vários testes e outra espera, mais um período de reflexão parental lá consegui o lugar de assistente de realização.

No primeiro dia, ou melhor, noite, pois trabalharia das nove às onze, estive a ambientar-me ao universo. A estação situa-se na zona do Young destinada à discoteca, que ultimamente se tem deslocado para o pavilhão desportivo do Liceu. Assim os programas ao vivo poderão ter público e há espaço para duas cabinas independentes. Enquanto uma está em emissão a outra pode estar a gravar um programa da madrugada ou um anúncio. Por mim teria ficado até de manhã na rádio, mas às onze mandaram-me embora.

Para casa eu podia seguir pela New England ou pela Main e depois cortar pela Câmara, visto que moramos como que atrás para sul do edifício, mais propriamente nas traseiras do hospital. Terei que falar da configuração urbanística de Silveira brevemente. Naquela noite decidi ir pela Câmara. E foi assim que vi os versos.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

14 – Amada Ventura

Já que estamos numa onda de apresentações, falto eu. Como já disse o meu pai é o gerente do Grand Groceries Silveira’s Store. Começou como moço de recados e foi subindo a pulso, sempre mostrando competência e eficiência. A minha mãe agora trabalha em casa, tal como a mãe do Mike, para o senhor Peninha. Tenho duas irmãs, a Isabel mais velha dois anos e a Beatriz mais nova quatro.

A nossa vida não tem sido fácil. A Isabel levou quase dois anos para arranjar trabalho. Teria sido fácil se não houvesse uma guerra surda contra a minha família. Não estou a dramatizar. De uma certa forma a história dos meus pais é parecida da história dos da Joana. A minha mãe é sobrinha neta do grande Teotónio. O meu avô Serafim era o irmão mais novo, ainda não tinha dois anos quando o venerável fugiu com o rabo à seringa.

Este meu avô foi à sua maneira também um aventureiro, casou três vezes e enviuvou igualmente três. Teve sete filhos, mas só a minha mãe sobreviveu a uma vida repleta de pobreza e mudanças. O avô Serafim chegou à Silveira em construção viuvo e com o desgosto de ter sobrevivido aos seis filhos que tivera. Mas a fibra dos Silvas bem representada no Teotónio veio ao de cima. Com quase cinquenta e oito anos voltou a casar com uma senhora de quarenta de Sabugal. A minha mãe nasceu desse casamento tardio.O avô Serafim tinha algo de poeta e pôs o nome à filha de Amada Luz. Sem dúvida fruto de um amor luminoso.

Apesar da diferença de idades a minha avó morreu antes do meu avô. Deixou a filha com dez anos. A adolescência da minha mãe foi passada a tomar conta do meu avô. Felizmente atingiu a maioridade na companhia do pai. Conseguiu logo um emprego nos correios e assim, quando ficou sozinha na vida, tinha um futuro assegurado.

Sei que a minha mãe teve vários namorados, pretendentes como antigamente se dizia. E se o seu nome estava ligado ao amor, também o seu destino estava. O romance dos meus pais é igualmente escandaloso para os padrões médios. Tenho muito orgulho dos meus pais e as minhas irmãs também. Apesar da solidão a minha mãe vivia feliz, não tinha inimigos, mas ao conhecer o meu pai a vida transformou-se. Quando conheceu? Não é bem assim. Quando o amor surgiu.

O meu pai, José Ventura Galhardo, mais conhecido por Ventura, viveu a infância e adolescência entre Sabugal e Silveira. O escândalo silveirense aparece porque a minha mãe é mais velha que o meu pai quase dez anos. Quando começaram a namorar o meu pai tinha acabado de fazer dezoito anos. O facto de trabalhar no Grand Groceries tão perto dos correios facilitou o surgimento da paixão dele. Começou a trabalhar com quinze anos e logo reparou naquela rapariga muito bonita que trabalhava nos correios. Na altura apareceu-lhe totalmente inacessível e por isso foi namoriscando. Viu uma oportunidade de aproximação namorando a irmã mais nova da poderosa Natércia Brigadeiro, a actual gerente do Fiona’s Boutique, chamada Custódia. A Natércia, que trabalhava como assistente à direcção da Boutique, era amiga de infância da minha mãe.

Para mal do casal Amada Ventura a Custódia desenvolveu uma paixão arrebatadora pelo namorado que o sufocava. Antes de se declarar à minha mãe o namoro com a Custódia tinha atingido a ruptura. Reconheço que o meu pai pode não ter tido a melhor atitude para com a namorada, mas se eu estivesse no seu lugar não sei o que faria. A Custódia fez a vida do meu pai um inferno quando ele rompeu e piorou muito mais quando se tornou publico o namoro com a minha mãe. A Natércia tomou as dores da irmã, como é natural, e usou todo o seu prestígio para prejudicar a ex-amiga.

Os meus pais foram em frente, desafiaram tudo e todos. A minha mãe acabou por ser obrigada a sair do emprego, não porque tenha havido pressão dos superiores, mas porque não havia ninguém, na altura, que quisesse tomar conta da minha irmã. Nenhuma ama aceitou a minha irmã e o único infantário opôs inúmeros obstáculos.

Espantoso é o facto de o meu pai ter conseguido chegar a gerente do Groceries. Ele, perante o concelho municipal, que gere a cidade, tem o mesmo estatuto da poderosa Natércia. Isto faz-me pensar que sendo o concelho maioritariamente masculino é mais fácil prejudicar uma mulher do que um homem.

Foi difícil, mas a minha irmã Isabel conseguiu entrar para os correios e a não ser que ela tentasse um trabalho tipicamente masculino ficaria sem possibilidades de se empregar. No primeiro dia de emprego dela, eu convenci os Espinhos Narcisos a fazer um brinde de cerveja à porta dos Young virados para o Fiona’s. Somos subversivos!