terça-feira, 28 de setembro de 2010

4 – O Segundo Grande Mistério de Silveira

Silveira situa-se entre a aldeia de Sabugal do Sado e o rio Sado. Estamos mais ou menos a meio do percurso do rio, numa zona oficialmente pouco habitada. Oficialmente nós vivemos todos em Sabugal. Como é que a autarquia, o governo civil, o governo, a GNR, o exército ou mesmo a CIA não descobriram isto? Não sei. Nem os órgãos de comunicação social. Soem as trombetas e rufem os tambores: este é o Segundo Grande Mistério de Silveira.

É um facto claríssimo que a cidade é um povoado clandestino. Não existe nos mapas, quaisquer que eles sejam. Um parente afastado meu (oitavo grau) fez tropa no Instituto Geográfico do Exército e procurou saber se Silveira constava dos registos. Nada. Um grande nada. Um deserto humano. Só campos, montados e arrozais.

Estaremos a viver para lá de algum portal para um mundo paralelo? Na realidade só existe uma única entrada para a cidade e terrenos circundantes, como se fosse, e representando, a entrada para uma grande herdade privada. Por que não considerar a hipótese de Silveira ser uma localidade situada num espaço paralelo ao real?

Mistério...

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

3 – O Grande Mistério de Silveira

A nossa relação com esta terra é estranha. Será de ódio? Será de amor? Serão ambos? Mas bem vistas as coisas Silveira é o nosso mundo, por sinal bem pequeno. Quem nasce aqui fica de tal maneira ligado, que tem havido casos de excelentes alunos no secundário preferindo não seguir estudos a sair.

No nosso grupo tem-se falado muito sobre isso. O que levará a tão estranho fenómeno? Para reforçar mais este mistério acrescente-se que a esmagadora maioria dos que saíram voltaram saudosos e rapidamente. Não é estranho? É o Grande Mistério de Silveira. Nome pomposo e com maiúsculas.

O que tem esta pequena terra para agarrar tão intestinamente os seus naturais? Será da água? A água que bebemos vem indirectamente do rio Sado (esta será uma boa história a analisar mais à frente). Será dos ares? Realmente há muito pouca poluição, se isto estivesse cheio de fumo, as pessoas talvez não quisessem cá viver... ou então não, Silveira deixaria de ser a cidade mais americana de Portugal para ser a mais tossidoura e por isso a mais barulhenta. Mais uma razão para sair e não voltar.

Será feitiço? O velho Teotónio seria alguma espécie de bruxo? Aprendera lá para as Américas algum voodoo poderoso, que aprisionaria a alma dos silveirenses aos escassos quilómetros quadrados da sua propriedade?

Já decidi há algum tempo: se conseguir entrar para a universidade, que vou querer ir para a de Braga ou mesmo dos Açores. Mas... mas veja-se a magia misteriosa a actuar, não consigo ver o meu futuro longe daqui. Mas por que raio será?

terça-feira, 21 de setembro de 2010

2 - Espinhos Narcisos

Quando alguém tenta ser um pouco diferente num meio pequeno, só arranja problemas. Foi o que me aconteceu com o trabalho escolar A Origem da Silveira. Criticaram-me por causa do “da”. Melindraram-se logo os lambe-botas do poder, chamar silveira à Silveira não é admissível. Este tipo de atitudes tornam a cidade num emaranhado de restrições que fazem faltar o ar a quem aspira ter uma existência mais desafogada. Criticaram o facto de não falar nada da história da cidade, pudera, a origem está no que deu origem e não nos factos mais importantes da grandiosa história desta importantíssima localidade. Queriam mais pormenores, mais factos e, sobretudo, informações mais exactas. Mas para quê? Isto é um mero trabalho escolar, que no máximo será lido pelo professor e alguns colegas, máximo dos máximos. Apesar de tudo consegui passar na disciplina e de ano, eu e meu grupo de amigos.

Eu sou o Beto, Alberto Manuel da Silva Galhardo. Sim, sou um membro dessa nobre e selecta família dos Da Silva, parente de quarto ou quinto grau do grande Teotónio, tal como os meus amigos Mike e Vanessa. Somos cada um a ovelha negra de cada um dos três ramos dessa família. Nós os três acabamos por não ser da mesma família, excepto se consideramos parentes entre o sexto e o oitavo grau, temos um trisavô comum. Mas há quem ache muita importância a isso. Nós, mais o Luís e a Joana formamos um pequeno, mas unido, clã nesta selva chamada Silveira.

Somos os Espinhos Narcisos. Nome de uma plantinha rasteira e chata, sobretudo para quem anda no campo e não tem cuidado onde põe os pés. O espinho narciso não chega a ter mais de vinte centímetros, as folhas são espinhos aguçados e tem uma flor amarelada. Faz lembrar aquela imagens microscópicas dos flocos de neve, só que com espinhos. Pois foi esse o nome que escolhemos quando tínhamos quinze anos e íamos entrar para o décimo ano. Tem tudo a ver com a cidade onde vivemos, espinhos – silvas, narciso – o enorme orgulho bairrista que impera por estas bandas.

O nosso pequeno clã caracteriza-se pela amizade que nos une. Não procuramos ser populares, não procuramos ser os líderes do que é que seja, também não procuramos destruir a cidade e suicidarmo-nos no fim. Simplesmente somos amigos, gostamos de estar juntos e apoiamo-nos mutuamente.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

1 - A Origem da Silveira

Era uma vez um homem chamado Teotónio da Silva, alentejano de beira Sado, que emigrou para os Estados Unidos da América no início do século XX. Tinha dezassete anos e emigrava fugindo dos pais e do patrão.

Por causa de um namoro descuidara-se da vara de porcos que tinha a seu cargo. Fora até à aldeia de Sabugal do Sado e deixara os porcos presos num redil debaixo de um sobreiro. Nessa noite o tempo estava propício a trovoadas e foi cair um raio logo no sobreiro que abrigava os porcos. Outros caíram nas redondezas, os animais que não morreram electrocutados pereceram com o incêndio que veio depois. Da aldeia, Teotónio percebeu que havia um incêndio para os lados do redil, correu lá. Não esperou ser responsabilizado, já vira por muito menos castigos bem severos. Numa corrida pela sobrevivência foi a casa arrumar os poucos pertences que possuía e num golpe de coragem correu à casa do patrão, entrou furtivamente, como sabia onde era guardado o dinheiro para pagar os ganhões, levou consigo o cofre onde era guardado.

Dois dias depois estava em Lisboa e embarcou no primeiro barco que encontrou no cais. Era um cargueiro que se dirigia para os Açores levando gado. Na ilha de São Miguel esteve pouco mais de seis horas, pois as autoridades estavam a pôr dificuldades à sua entrada na ilha, por ser menor. Mais uma vez fugiu. E a sorte levou-o até perto de um grupo de pessoas que se preparava para embarcar para um paquete. Aproveitou a confusão e entrou também. Quatro dias depois de o barco partir, no meio de uma tempestade, foi descoberto e passou o resto da viagem entre a casa das máquinas, onde pernoitava, e a cozinha onde ajudava nas limpezas. No dia em que o paquete aportou em New York, mais uma vez aproveitou-se da confusão e fugiu. Não seria a última fuga. A estadia de Teotónio da Silva nos Estados Unidos foi repleta de fugas e aventuras, dignas de um dia serem postas em livro.

Após várias peripécias a vida de Teotónio acalmou, estaria por volta dos vinte cinco anos. Aprendeu a ler e a escrever. Empregou-se na linha de montagem de uma fábrica de automóveis da Ford. Em cinco anos conseguiu chegar a mecânico operador de máquinas. Com esta habilitação conseguiu um lugar numa fábrica de têxteis numa pequena cidade de New England. Foi aí que conheceu a senhora Fiona Stratford Wildmore recém viúva do dono da fábrica Wildmore Weaving, Brian Jacobs Wildmore Junior. O casal Wildmore teve dois filhos, Brian Jacobs Wildmore III e Mary Jane Wildmore, na altura a entrar na adolescência.

Ao fim de cinco anos a trabalhar na fábrica, primeiro como operário, mas subindo de posto gradualmente, Teotónio conseguiu entrar em contacto com a Lady Fiona graças ao seu cargo de encarregado de amostras. Ela requisitara amostras para um vestido da filha e o nosso Teotónio foi destacado para tal. Nunca mais ambos foram os mesmos. Nasceu ali uma relação fortíssima, que permaneceu dois anos oculta. No entanto, o segredo acabou e o escândalo podia ter sido maior se não se estivesse a entrar nos loucos anos vinte, apesar de naquela cidade a abertura desses anos ter esbarrado com o conservadorismo local. Os filhos de Fiona nunca aceitaram a ligação da mãe com o português, muito menos o casamento deles. Abonando a favor de Teotónio fica a sua iniciativa de o casamento ser com separação de bens. Ele genuinamente entrava no casamento por amor e reconhecia que o património de Fiona devia ser dos filhos.

O casamento durou dezassete anos, Teotónio tinha cinquenta e quatro quando Fiona de setenta faleceu. O desgosto quase que levou também a ele à sepultura. Sabendo a diferença de idades o português foi fazendo um pé-de-meia como precaução para a viuvez, pois sabia que os filhos de Fiona fariam tudo para o verem longe. Grande surpresa surgiu a quando da leitura do testamento. Metade do património da senhora Fiona Stratford da Silva, correspondendo a dinheiro, obras de arte e um apartamento em Manhattan, foi destinado para o Teotónio, ficando o resto que correspondia à fábrica e restantes imóveis para os filhos. Estes tentaram em tribunal contestar o testamento, mas não tiveram sucesso.

Nas vésperas da Segunda Grande Guerra Teotónio veio para Portugal. Com o pé-de-meia que amealhara poderia se dizer que ia viver livre de vergonhas, talvez como dono de uma loja ou restaurante, mas com tudo o que herdou chegou à sua pátria como um milionário. Encontrou um país muito diferente dos Estados Unidos, muito mais atrasado económica e culturalmente. Passou um ano em Lisboa e após várias visitas à sua terra natal, comprou várias propriedades entre a aldeia Sabugal do Sado e o rio com a intenção de criar uma réplica da cidade onde viveu o amor da sua vida. O nome da nova terra era para se chamar Fiona, mas numa vitória da razão sobre a emoção resolveu chamar-lhe Silveira. E assim surgiu a cidade onde nós vivemos, que é mais pequena que a aldeia de Sabugal.

E foi graças a este brilhante trabalho que eu ia quase chumbando no ano passado na importantíssima disciplina do décimo primeiro ano de Cultura Cívica do Liceu Geral de Silveira.